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Opinião
Segunda - 27 de Março de 2023 às 04:38
Por: Vinícius de Moraes Franco

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Vez ou outra surge um assunto que faz este criminólogo romper com sua indolente inércia para escrever algumas palavras e, como de costume, não haveria de ser um tema dos mais simples em Direito, mesmo porque ele cruza as fronteiras da própria ciência jurídica. Vamos enfrenta-lo mesmo assim.

Desta vez a alta corte do judiciário brasileiro parece ter descoberto algo que há muito tempo as universidades e seus programas de pós-graduação discutem (Antes tarde do que nunca!): que existe um tratamento desigual no ambiente social e, no caso que nos interessa agora, um tratamento desigual e injusto destinado às pessoas negras pelas instituições de controle formal, sobretudo, a polícia. A expressão emplacada é o chamando “perfilamento racial” nas abordagens policiais.

Embora não muito conhecido pelo público geral, o surgimento e sentido desse termo estão intimamente ligados a ideias e conceitos mais disseminados entre as massas, como o racismo estrutural ou racismo institucional. A abordagem retórica é quase tautológica. Isso significa que para falar em perfilamento racial é imprescindível falar em racismo estrutural e institucional; é como dizer a mesma coisa expressa em termos diferentes. A verdade é que todas essas expressões designam fenômenos que não possuem nada de novo e estão presentes na história brasileira desde que as brancas velas das naus lusitanas apontavam no horizonte.

A canção de Belchior disse que o passado é como uma roupa velha que não nos serve mais. Talvez se você estiver falando do seu ex marido ou da sua ex mulher, a afirmação seja verdadeira - e até desejável, na modesta opinião deste colunista. O mesmo não pode ser dito dos problemas sociais relacionados ao racismo estrutural e suas intersecções com a criminologia e a política criminal, que continuam muito atuais. Quando se trata disso, estamos exatamente a falar de “permanências”, ideia que eu classifiquei em meu livro sobre criminalização e a fabricação dos inimigos sociais “como aquilo que não deixou de ser, que permaneceu na sociedade brasileira, no imaginário social, nos discursos midiáticos e nas representações das instituições de controle, mesmo diante das progressistas intenções legislativas” (FRANCO, 2022, p. 92).



São esses os fantasmas do nosso passado que assombram o momento presente da dinâmica social brasileira e que o STF está a debater

São esses os fantasmas do nosso passado que assombram o momento presente da dinâmica social brasileira e que o STF está a debater. Soma-se a isso o fato de que nesta semana se celebra o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial (21 de Março), instituído pela ONU, não obstante a população negra no Brasil continue sendo violada em seus direitos e liderando trágicas estatísticas.

Tudo nos leva a uma reflexão: o que há de novo e de velho neste caso?

O caso

Francisco Cicero dos Santos Junior foi condenado a uma pena de 7 anos, 11 meses e 8 dias de reclusão em regime fechado por tráfico de drogas, quando foi preso portanto 1,53 grama de entorpecentes. Sim, por menos de 2 gramas de droga, Francisco pegou uma pena superior a do homicídio simples. Detalhe importante: a sentença de primeira instância foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, na segunda instância.

Antes de a matéria ir parar no Supremo, a Defensoria Pública reclamava a aplicação do princípio da insignificância ao caso junto à 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em razão da ínfima quantidade de droga, e foi o relator do processo no STJ, Ministro Sebastião Reis Júnior, indo além do argumento da insignificância trazido pela defesa, quem primeiro suscitou que teria ocorrido perfilamento racial na abordagem policial, pois, segundo o ministro, tudo estava a indicar que a "fundada suspeita" dos policiais militares que fizeram a abordagem foi só a cor da pele do suspeito.

Embora o voto do relator pela absolvição do réu tenha sido vencido, o Superior Tribunal de Justiça reduziu a pena de quase oito anos para menos de dois anos, acatando tese subsidiária de tráfico privilegiado. De todo modo, foi um insight muito bem vindo o do Ministro Sebastião, e também o gatilho que a Defensoria precisava para levar o tema do perfilamento ao STF no bojo do remédio heroico, como é conhecido o HC.

Foi então que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo impetrou o habeas corpus 208.240/SP que objetiva, antes de tudo, reconhecer a nulidade da apreensão realizada em virtude da ocorrência de perfilamento racial na abordagem policial, enquanto manifestação explícita de racismo institucional feito na busca pessoal.

De fato, a evidência de filtragem racial é contundente nesse caso. No auto de prisão em flagrante, o policial responsável pela abordagem declarou ter avistado um "indivíduo de cor negra em cena típica de tráfico de drogas", em pé, em via pública, próximo a um veículo parado. Ora, basta se perguntar se estar parado na rua, ao lado de um carro, é uma cena típica de tráfico de drogas? E acima de tudo, por que a cor da pele faz diferença na caracterização da tal cena típica de tráfico de drogas a ponto do policial consigná-la em sua declaração? O que diabos configura uma cena típica de tráfico de drogas? Estaríamos tratando desse assunto fosse Francisco um homem branco e bem vestido parado na rua ao lado de um carro?

Foi com base nisso que o relator do HC no Supremo, Ministro Edson Fachin, assentou que os policiais teriam agido motivados pela cor da pele do suspeito, portanto, não enxergava a justa causa concreta para a busca pessoal, e declarou liminarmente a nulidade da revista pessoal, com o consequente trancamento da ação penal. Ao final de seu voto, propôs a formulação de tese para coibir abordagens policiais com perfilamento racial e seu controle pelo Poder Judiciário.

Ao ser questionado pela Ministra Rosa Weber qual tempo seria necessário para seu voto, Fachin deu a dimensão da relevância e repercussão social do tema. “Para julgar essa matéria talvez precisasse da eternidade”, disse o Ministro.

E a crítica precisa ser justa. Este artigo, a um só tempo, é uma censura e um elogio ao judiciário brasileiro, que, para dizer o mínimo, resolveu enfrentar tema tão espinhoso em uma sociedade que reclama um punitivismo a qualquer custo por parte de suas instituições, acusando-as diuturnamente de serem condescendentes com a criminalidade. O Supremo Tribunal Federal dá sua cara à tapa, exerce um importante papel contramajoritário e mais uma vez se coloca em linha de ataque para a opinião pública, especialmente caso se confirme a tendência que os primeiros votos mostraram, no sentido de se formular tese (um precedente) para ser aplicada em outros casos futuros.

O julgamento, que foi suspenso no dia 08/03/2023, com um pedido de vistas do Ministro Fux, analisa se a prova nesse processo (a apreensão da droga na abordagem policial) é considerada ilícita, e se assim for decidido pela corte, a condenação de Francisco será anulada, pois o processo é viciado, da mesma forma como ocorreu em processos da Operação Lava Jato. É a tão criticada Teoria dos frutos da árvore envenenada, que estabelece que toda prova produzida e obtida por meio ilícito, como uma busca ilegal, estará contaminada pela ilicitude, considerada ilícita por derivação. São as regras do jogo, você goste ou não.

Portanto, em que pese existam questionamentos sobre a amplitude e o impacto real da decisão do STF, pois o caso, por ser um julgamento em sede de habeas corpus, não tem repercussão geral e a decisão não conta com efeitos vinculantes, não resta dúvidas que a possível tese fixada pelo Supremo é paradigmática, e firma uma base interpretativa no sentido de coibir o perfilamento racial em casos futuros semelhantes.

“Um museu de grandes novidades”: racismo e escravidão no Brasil de hoje

Não precisa ser muito criativo quando se tem a música popular brasileira contribuindo para nossas epifanias

Não precisa ser muito criativo quando se tem a música popular brasileira contribuindo para nossas epifanias. Como eu já disse, o problema do preconceito e da discriminação baseada na cor da pele está enraizado na sociedade brasileira e, no Brasil do século XXI o racismo é mais poderoso do que nunca.

O perfilamento racial, sendo uma das manifestações do racismo estrutural presente em todas as camadas e relações públicas e privadas da estrutura social brasileira, acontece quando as buscas pessoais não são feitas a partir de evidências objetivas que apontem uma atitude suspeita. A filtragem racial baseia-se na raça, cor, descendência, nacionalidade ou etnicidade do alvo da abordagem.

Esse sistema de opressão, que foi historicamente forjado desde a escravidão e permanece nos dias atuais, é baseado em percepções estereotipadas e preconceituosas sobre quem é ou deixa de ser uma pessoa suspeita, traduzindo uma visão eugenistas e de superioridade branca que teve grande aderência na sociedade brasileira desde a sua formação.

Para se ter uma noção do tamanho do problema, Nina Rodrigues foi um médico e antropólogo brasileiro do século XIX, cujas ideias influenciaram muito o pensamento do século XX e vigoram até hoje no imaginário social. O vasto legado deixado por Rodrigues nas áreas da medicina e das ciências humanas trouxe grande radicalismo para o chamado racismo científico (um racismo justificado cientificamente), à medida que essas teorias raciais se notabilizaram por atribuir aspectos degenerativos aos negros e índios, considerados, à época, como raças inferiores à raça branca e mais propensas ao cometimento de crimes.

Foi Nina Rodrigues um dos maiores representantes no Brasil das teorias de Cesare Lombroso, no sentido de detectar e justificar “cientificamente” (com muitas aspas) a periculosidade de determinadas raças a partir de características físicas.

Essa racionalidade movida pela branquitude e pelo racismo está entranhada nas nossas representações sobre o crime e sobre o criminoso, ou seja, sobre os sujeitos merecedores ou não da desconfiança social. São essas mesmas representações que permeiam a atuação das agências do sistema penal, afinal, “agências de controle refletem os estereótipos da opinião pública”.

Fica claro que o racismo científico foi ao passar dos anos incorporado na formação acadêmica e militar dos agentes públicos, contribuindo para processos jurídico-sociológicos de criminalização e de seletividade penal. É assim que o "escravo fujão" do Brasil do passado se converteu no "negro ladrão" do Brasil de hoje, construindo a impressão subjetiva do policial sobre aparência ou a atitude suspeita do indivíduo, maculando com nuances racistas aquilo que se conhece como tirocínio ou instinto policial (lembra-se do homem negro na dita cena típica de tráfico de drogas?).

Por essas razões, a despeito do comando legal do §2º do art. 240 do Código Penal não abrir brechas para subjetividades na interpretação, pela polícia, do que vem a ser uma “fundada suspeita” para basear uma busca pessoal, eis que a suspeita deve estar fundada na ocultação de arma proibida ou de determinados objetos, o racismo institucional continua a orientar as atuações dos agentes de segurança pública.

Influenciados pela criminologia positiva, lombrosiana e bioantropologica, hoje ainda fazemos (todos nós) a caracterização do indivíduo com base em esteriótipos: a toca, o boné, o moletom, a postura, o lugar onde se encontra, a cor da pele. Não por acaso, a pesquisa “Por que eu?” realizada pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa demonstrou que uma pessoa negra tem risco 4,5 vezes maior de ser abordado pela polícia que uma pessoa branca.

E já que estamos falando em fantasmas do passado, pensemos por um instante em outro acontecimento igualmente recente que causou perplexidade em muitos de nós: o caso dos “escravos do vinho” na serra gaúcha.

Três das principais vinícolas gaúchas, com destaque no mercado nacional, estão no epicentro dos acontecimentos, desde que uma força tarefa coordenada pelo Ministério Público do Trabalho resgatou, em 22 de fevereiro, cerca de 200 trabalhadores em condições de trabalho análogo à escravidão, expondo a situação de extrema precariedade, violência e agressão à qual eram submetidos durante a safra da uva na região de Bento Gonçalves/RS. Esses homens foram contratados por empresas terceirizadas para trabalhar nas lavouras uva da região e a maioria deles eram levados para as vinícolas Salton, Garibaldi e Aurora.

Embora todos os envolvidos nesse caso devam ser responsabilizados na forma da lei e na medida de sua responsabilidade, não tenho a intenção de incentivar uma caça às bruxas para boicotar produtos dessas marcas ou da região produtora, mesmo porque, a meu ver, isso é absolutamente destrutivo e pouco civilizatório em vários aspectos. Por outro lado, há neste caso um ardil que desnuda a crueldade da lógica racista que nos assombra até hoje.

Entendamos que é um caso de escravidão contemporânea. Nefasto em todos os sentidos e para qualquer pessoa, de qualquer região, origem ou etnia do globo, mas mesmo nessa situação o tratamento desigual baseado no racismo estava presente, pois, de acordo com dados do Ministério do Trabalho e Emprego, divulgados pelo jornalista Leonardo Sakamoto, no UOL, 93% dos trabalhadores resgatados são baianos e 95% se declararam negros.

Ainda, para ver que não existem coincidências, um dos poucos trabalhadores gaúchos ali, relatou ao UOL, que ele e seus conterrâneos eram tratados de forma diferente dos baianos e que os castigos físicos eram apenas para os baianos. “Eles apanhavam bastante... nós do Sul não apanhávamos”, disse o trabalhador.

Quero crer que nem toda vinícola tem um pouco de engenho de escravos.

A meia culpa de um sistema de justiça hegemônico.

Como disse Abdias Nascimento, “É preciso uma ingenuidade perfeitamente obtusa ou uma má-fé cínica para se negar a existência do preconceito racial”.

Não por acaso, segundo a antropóloga da Unicamp, Dra. Adriana Dias, o crescimento de grupos neonazistas no Brasil foi de 270% entre janeiro de 2019 e maio de 2021, estimando-se que no país existam 530 células extremistas com cerca de 10 mil participantes.

Para que vislumbremos, para um Brasil do futuro, uma sociedade livre de racismo, é preciso que as instituições brasileiras de controle formal sejam compostas por pessoas efetivamente comprometidas com a pauta antirracista, que tenham consciência da realidade social massacrante e excludente em que estão inseridas e que não vejam o Direito apartado de questões sociais.

Retomando o caso do perfilamento racial, a Vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, ao defender a abordagem policial afirmou que os Ministros não estavam a debater um problema social, que o racismo não é um “privilégio” do Brasil e que ele ocorre “em todos os lugares”, existindo esse tipo de opressão em outros países, como nos Estados Unidos e em Portugal.

Entre outras inconsistências, confesso que me perdi na total falta de silogismo dos argumentos apresentados pelo MPF. Só ficaram perguntas: Viva o Brasil, que compõe o vasto grupo de nações que perpetuam a discriminação com base na cor da pele, origem ou etnia do indivíduo? Somos racistas, mas todo mundo é, então está tudo bem?! Será que o racismo supostamente sofrido por aqueles brasileiros que frequentam outros países é igual ao que sofrem os negros no Brasil? Será mesmo que o racismo, por ser um problema social, não é um problema para o Direito e suas instituições?

Ignora-se que o Direito é uma construção social e principalmente, que esse Direito é interpretado por instituições de controle formal. Nesse caso, não há como desprezar que também o Judiciário e o Ministério Público são influenciados pelas mesmas representações e sistemas de valores hegemônico-burgueses formadores das percepções sobre o crime e o criminoso, dando sentido à lei ao aplicá-la no caso, tudo num nítido processo de criminalização secundária e seletividade penal.

Não por acaso, o caso de Francisco Cicero dos Santos Junior revela o fracasso institucional do sistema de justiça brasileiro, que o condenou, em duas instâncias, a quase oito anos de prisão, a despeito da baixíssima quantidade de droga apreendida e da alegação, em todos os momentos processuais, de que ele era usuário de drogas.

Foi preciso que este caso fosse ao STJ para se ver a pena reduzida para dois anos e onze meses, e ao Supremo Tribunal Federal para se dizer que se trata de um evidente caso de perfilamento racial. Aliás, foi somente a polícia que levou a efeito uma abordagem com base em perfilamento racial... ou também o próprio sistema de justiça, sobretudo nas decisões condenatórias da primeira instância e do Tribunal de Justiça de São Paulo, escancarando seus preconceitos e visões distorcidas sobre o crime? O que dizer do papel da autoridade policial e do Ministério Público que, em sua sanha punitivista, buscou a aplicação da lei penal da forma mais rigorosa possível no caso?

O fato que ninguém quer admitir é que pessoas pertencentes a determinados grupos sociais sofrem uma discriminação histórica na esfera pública, na maior parte das vezes de forma camuflada ou implícita. Por isso, enfrentar a discussão sobre a validade de prova obtida em busca pessoal baseada na cor da pele é fundamental, devendo o Supremo limitar atuações institucionais que colaboram para perpetuação de sentidos negativos baseados em estereótipos.

Vinícius de Moraes Franco é advogado



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