Mulheres buscam por embriões fertilizados por Abdelmassih Ex-pacientes não sabem destino dos embriões que não foram implantados. Muitos acabaram esquecidos, porque denúncias de estupro eram muito mais graves.
Um novo escândalo envolvendo Roger Abdelmassih: o sumiço dos embriões deixados na clínica por mulheres que sofreram abusos sexuais e fugiram do ex-médico. Essas mulheres agora vivem o drama de imaginar: será que os embriões delas foram implantados em outras mulheres? Será que esses bebês nasceram em outras famílias?
Há 21 anos, a estilista Vana Lopes procura por filhos que ela nem ao menos sabe se existem.
Fantástico: Os embriões que foram produzidos e que não foram implantados em você, você nunca soube o destino deles.
Vana Lopes: Nunca soube, mas eu estou procurando. É que nem procurar uma agulha no palheiro, é difícil. E eu estou procurando.
Fantástico: Ele pode ter implantado meus embriões em outras mulheres?
Vana Lopes: Pode sim.
Ele é o ex-médico Roger Abdelmassih, especialista em reprodução humana, condenado em 2010 a 278 anos de prisão por 56 estupros contra pacientes. O registro profissional cassado em 2011, foragido da Justiça durante mais de três anos. Preso, finalmente, em agosto de 2014, no Paraguai.
Há 21 anos, Vana fez, na clínica de Abdelmassih, um tratamento para engravidar. Em uma clínica de fertilização, o que acontece é o seguinte: a mulher recebe hormônios para produzir muitos óvulos. Esses óvulos são retirados pelo médico. Os espermatozoides são coletados do marido. Em laboratório, o médico junta óvulos e espermatozóides e produz o embrião, que é implantado no útero da mulher. Isso é chamado fertilização in vitro.
Vana mostra um documento de 2009, assinado por Roger Abdelmassih: foram retirados dela 20 óvulos e produzidos 14 embriões. Quatro foram implantados nela.
Vana Lopes: Essa que é a certidão de existência.
Fantástico: Que ele assinou dizendo que produziu embriões seus.
Vana Lopes: Sim. E que sobraram dez.
As tentativas de fertilização não deram resultado. E Vana ainda foi estuprada por Abdelmassih. Nunca mais quis voltar à clínica, mas não esqueceu o que deixou para trás, além da esperança perdida: os embriões, os que sobraram do tratamento, ficaram lá congelados.
Segundo ela, Roger Abdelmassih disse que eram embriões saudáveis, perfeitos, que poderiam dar origem a dez crianças.
Fantástico: Você acredita que eles nasceram?
Vana Lopes: Sim.
Ela suspeita que seus embriões foram implantados em outras mulheres. E que ela, Vana, seja mãe de filhos que não conhece. “Eu quero saber se eles estão bem. Não quero tirar a guarda de nenhum. Eu acho que mãe é quem cria, eu tenho uma filha adotiva. Mas eu quero saber se eles estão bem, é só isso que eu preciso saber”, diz.
O que foi feito dos embriões da clínica de Abdelmassih? Muitos destes embriões acabaram esquecidos, porque as denúncias de estupro contra o doutor Roger na época eram muito mais graves.
“O nosso foco era o médico e os estupros que ele cometia. Não havia, na verdade, um olhar sobre o que pudesse estar acontecendo com os embriões”, diz o promotor de Justiça José Reinaldo Carneiro.
Outros homens e mulheres sentem agora a mesma angústia de Vana: procurar por filhos que podem ter 10, 15 ou 20 anos de idade, se é que eles existem.
Em uma casa na Zona Oeste de São Paulo funcionou, durante anos, a clínica de Roger Abdelmassih. O Fantástico conversou com um casal que fez fertilização in vitro lá no fim da década de 90 e teve dois filhos. Eles contam que os embriões que sobraram do tratamento foram congelados por Abdelmassih, e que logo depois do nascimento das crianças o marido voltou à clínica para procurar pelos embriões, para ter mais informações, e que ele foi expulso pela porta principal por dois seguranças do médico. “Ele falou para mim que não tinha embriões nenhum, que eu estava ficando louco”, conta.
O marido nunca superou aquele trauma, e prefere não mostrar o rosto. É a primeira vez que ele comenta o assunto.
Fantástico: Você foi expulso da clínica?
Marido: Eu fui expulso por dois seguranças grande, grandão. Parecia um Hulk de tão grande que eram os dois.
O casal afirma que deixou nove embriões na clínica. “Eu fiquei em crise de pensar onde estão meus filhos, onde estão os outros meus filhos? Eu sou mãe de outros filhos e não sei quem é”, lamenta a dona de casa Danielle Pinholato.
“A cabeça roda muito à noite, e a gente fica só pensando, não dorme”, afirma o marido de Danielle.
“Ele fez de mim uma fábrica de embriões”, afirma Danielle.
Depois da revelação dos estupros, a clínica faliu. O laboratório que hoje ocupa o casarão alugou o imóvel vazio e sem vestígios do banco de embriões, segundo sua assessoria de imprensa.
O Fantástico telefonou para o advogado de Roger Abdelmassih, José Luís Lima, e perguntou sobre o destino dos embriões que estavam na clínica. “Não tenho a menor noção disso, vou até perguntar para alguém da família”, disse o advogado. Ele pediu o telefone, mas nunca ligou de volta.
Próximo passo da investigação: ir à clínica do filho de Roger, Vicente Abdelmassih, que também é especializado em fertilização e teria ficado com parte dos equipamentos do pai. Ele não quis receber o Fantástico.
O Fantástico procurou o Conselho Estadual de Medicina de São Paulo, que anunciou: vai abrir uma sindicância para tentar descobrir onde estão os embriões.
“O proprietário é o paciente, é o cliente. Ele é o responsável pela existência daquilo. Agora, a guarda fica por conta da clínica”, diz o presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, João Ladislau Rosa.
O médico diz que a fiscalização das clínicas onde os embriões ficam guardados deve ser feita pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. Uma resolução da Anvisa diz que a agência monitora o destino dos embriões produzidos no país a partir de relatórios enviados pelas clínicas. A clínica de Abdelmassih, fechada antes da resolução da Anvisa, não enviava os relatórios.
O Fantástico tentou uma entrevista, mas, por e-mail, a própria Anvisa disse que a responsabilidade, no caso, é da Vigilância Sanitária do estado de São Paulo.
Alegando que o problema não é sanitário, a vigilância estadual se eximiu da responsabilidade pelos embriões de Abdelmassih. Mas a vigilância municipal afirmou que, à época do fechamento da clínica, a responsabilidade era sim da vigilância estadual. Ou seja: na Anvisa, sobre embriões humanos, ninguém se entende.
“As vigilâncias sanitárias municipal e estadual de São Paulo também poderiam ter trabalhado em conjunto com a Anvisa. Mas o órgão nacional a quem se atribuiu o dever de controlar o local onde estão guardados, as condições de criopreservação dos embriões, é a Anvisa”, ressalta o procurador de Justiça e especialista em Bioética Diaulas Costa Ribeiro.
“Se nós mulheres, eu principalmente, começar a pensar, você fica louca. Você enlouquece de imaginar onde estão, qual a possibilidade de eu ter outros filhos implantados em outras mulheres, de eu ter outros filhos sabe lá como, de repente em outro lugar do país”, afirma a empresária Ivanilde Serebrenic.
O casal Ivanilde e Celso também fez tratamento com Abdelmassih, em 1999. “Todo o ambiente, até a entrada dele no consultório, era toda preparada, toda triunfal”, diz o empresário Celso Serebrenic.
Pela primeira vez, Celso, marido de uma vítima do doutor Abdelmassih, resolve desabafar. Ele desconfia de como o material genético era usado na clínica. “Tem pais que não são pais, mães que receberam óvulos de outras doadoras”, afirma.
“Esse homem foi uma aberração”, diz Ivanilde.
Eles contam que tiveram que responder juntos a um questionário detalhado sobre características genéticas dos dois e dos antepassados deles. “A ficha era muito extensa, inclusive com foto, origem, de onde veio, origem dos pais, cor do cabelo, cor dos olhos”, conta Ivanilde.
E dizem também que poderiam escolher as características dos filhos gerados na clínica.
Ivanilde Serebrenic: Eu não pedi a escolha do sexo, eu não pedi cor de olho, eu não pedi nada, para mim.
Fantástico: Mas ele oferecia isso?
Ivanilde Serebrenic: Oferecia.
O tratamento foi iniciado. “Foi dito por ele: ‘Você produziu 16 óvulos e você tem hoje nove embriões de excelente qualidade’”, lembra Ivanilde.
Quatro embriões foram implantados em Ivanilde. Sobraram cinco. “O que que você imagina? Ah, é numa possibilidade de um segundo tratamento, se eu não produzir óvulos, eu já tenho os meus embriões aqui guardados. No meu caso, eu não tive uma próxima tentativa, porque, no meu caso, eu sofri um abuso e abandonei a clínica, abandonei o tratamento”, lembra Ivanilde.
Celso e Ivanilde vão entrar na Justiça. “Nós vamos atrás disso. Nós já decidimos que vamos atrás disso. Ele vai ter que pagar por mais um crime”, afirma Ivanilde.
Só que tudo isso ainda não é crime, porque não há lei no Brasil sobre o destino de embriões humanos.
“Estamos diante de um escândalo nacional, que infelizmente os freios que o Estado deveria colocar não foram colocados”, afirma o procurador de Justiça em Bioética Diaulas Costa Ribeiro.
A prática da reprodução humana no Brasil é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina, sem a força de lei. Se Roger Abdelmassih implantou em uma mulher os embriões de outra, ele não teria cometido um crime. Nem se simplesmente jogou fora os embriões sem consultar os pais.
Gislaine e o ex-marido dela contam que isso aconteceu.
Fantástico: Ele nunca deu para vocês um relatório, um papel, dizendo quantos embriões foram produzidos? Nunca?
Gislaine: Não.
Ex-marido: Ele falava que produzia muitos, quase todos, e utilizava só dois ou três.
Fantástico: E o que ele fazia com os outros?
Ex-marido: Ele dizia que descartava.
Hoje no Brasil há 200 mil embriões congelados. “É uma cidade de embriões que estão aí esperando serem implantados ou esperando um destino legal previsto em lei”, afirma a advogada e professora Ana Cláudia Scalquette.
A advogada escreveu o projeto de lei que está tramitando no Congresso Nacional há dois anos. Nele, fraudes passam a ser crimes.
Ana Cláudia Scalquette: O desaparecimento é um dos mais graves previstos nesse novo projeto, com a pena mais alta. Porque, afinal de contas, o desaparecimento de um embrião, para os casais envolvidos, é o desaparecimento de um filho.
Fantástico: Qual a pena prevista?
Ana Cláudia Scalquette: De três a dez anos de reclusão.
Se existisse lei como essa, o Ministério Público poderia abrir uma investigação sobre o destino dos embriões da clínica de Abdelmassih.
“Uma investigação que pode nascer deve buscar entender como eles foram transportados e para onde, mas para isso eu preciso das vítimas apontando caminhos para o Ministério Público”, afirma o promotor de Justiça José Reinaldo Carneiro.
Na sexta-feira (12), o Fantástico foi procurado pela assessoria da clínica onde trabalha o filho de Roger Abdelmassih, doutor Vicente, que tinha se recusado a falar com o Fantástico.
Assessora: Alguém do Fantástico esteve há duas semanas lá em uma das clínicas que o Vicente atende.
Repórter: Fui eu.
Assessora: Foi você? Ah tá. Você esteve lá e ele não quis te atender, é isso?
Repórter: Isso. Eu disse qual era o motivo, expliquei, e ele disse que não iria me atender.
Segundo a assessoria, parte do banco de embriões produzidos por Roger está na clínica, onde, até o momento, o Fantástico não pôde entrar.
“O que eles me explicaram é o seguinte: que eles não são, não eram responsáveis técnicos. Eram funcionários. Eles não eram responsáveis técnicos pela clínica, nem nada. Então o que eles fizeram? Quando a clínica fechou, por uma questão de responsabilidade médica, eles tiraram o que tinha ali e levaram. O que estava ali de embrião dentro da clínica, eles pegaram os embriões e eles levaram”, diz a assessora.
O Fantástico deu os nomes das quatro famílias que aparecem nesta reportagem, para saber se os embriões delas estão na clínica do filho do doutor Roger.
Assessora: O que eles disseram é que eles não encontraram dessas pessoas que você me passou.
Fantástico: Esses que a gente deu os nomes não estão aí?
Assessora: É, eles não encontraram.
Vana, Gislaine, Danielle, Ivanilde e os maridos ficaram sem resposta. “Ele usava daquela sensibilidade do seu sonho, o momento mais precioso da vida de um casal, que é ter filhos, que é buscar a família”, lamenta Ivanilde.
Eles continuarão a procurar por filhos sem nem saber se eles existem. “Abdico de toda indenização, eu não quero um centavo. Eu só quero saber o destino dos meus embriões”, diz Vana.
“Seria o maior sonho meu de mãe, claro, porque é uma coisa que fica guardada e eu não esqueço nenhum dia”, afirma Danielle.
Fantástico: Você não vai descansar, né, Vana?
Vana Lopes: Não. Não, eu não vou.
Fantástico: O que você imagina que você vai sentir em um dia se você der de cara com um?
Vana Lopes: Eu já imaginei até o encontro.
Fantástico: Já?
Vana Lopes: Já, já imaginei um encontro.
Fantástico: O que você gostaria de dizer para eles um dia?
Vana Lopes: Que eu queria ter feito eles nascerem.
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