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Nacional
Terça - 04 de Fevereiro de 2014 às 20:50

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Sou analfabeto, só sei assinar meu nome. Como sempre trabalhei, meu pai achava que eu não precisava estudar. Éramos seis irmãos e vivíamos com grande dificuldade. Meu pai e minha mãe bebiam muito. Eles estavam sempre brigando, a casa era uma confusão. Não queria que minha família fosse assim. Então, quando me casei, decidimos ter um único filho e depositamos nele todas as nossas esperanças. Ele foi o primeiro da família a terminar uma faculdade. Fez até curso de pós-graduação. Costumava dizer que compraria uma casa e nos tiraria desta comunidade, onde vivo há mais de 40 anos.

Nasci em Madureira (Zona Norte do Rio), mas passei a vida inteira aqui na Águia de Ouro (comunidade também na Zona Norte). Minha mulher é da Paraíba e veio para cá muito cedo. Começamos a namorar há mais de 30 anos, casamos e sempre tivemos uma vida difícil. Sou pedreiro, minha mulher faz faxina. Trabalhava das 7 da manhã às 11 da noite para juntar dinheiro e comprar nossa primeira casa, onde Adriano nasceu. Lembro que era uma casinha de telha, que não tinha nem banheiro. Tomávamos banho no quintal.

Depois do Adriano, minha mulher ainda perguntou se eu não queria tentar mais um filho, quem sabe uma menina. Mas não gostei da ideia. Em família grande é difícil dar estudo para todo mundo, e essa era uma prioridade para mim. Quando o Adriano ficou adulto, perguntamos se queria uma irmãzinha. Ele respondia que não valia a pena ter o trabalho de criar mais um filho, porque daqui a pouco nos daria uma netinha. E a gente se conformou só com ele.

Investimos nos estudos do Adriano. Como somos leigos em escrita e leitura, contratamos uma explicadora para ensinar direitinho as coisas que ele ouvia na escola. Ele ia para o colégio, depois a explicadora nos ajudava a entender melhor o que a professora passou. Colocamos o Adriano em curso de digitação, informática, tudo para que tivesse alguma oportunidade melhor na vida. Ele escolheu fazer faculdade de administração. Trabalhava de dia num shopping e estudava de noite. O salário na época era baixo. Então eu sempre fazia um bico a mais, trabalhava sábado, domingo e feriado para ajudar meu filho a pagar a faculdade.

Ele gostava muito de estudar. Espalhava papel pela casa toda e trazia muitos colegas para estudar aqui também. Vinha até gente da Zona Sul. Ele nunca teve vergonha de o pai ser pedreiro e a mãe ser doméstica, não escondia isso de ninguém. Depois que se formou, fez logo uma pós-graduação, na universidade federal. Era uma rotina corrida. Adriano chegava em casa todo dia depois da meia-noite, para acordar cedo no dia seguinte. Como nessa época havia muito bandido na comunidade, ele às vezes era abordado pela polícia quando voltava da faculdade. Nunca se envolveu com nada. Era um menino simpático, de boa aparência. Gostava de andar cheiroso e bem vestido.

Há alguns anos ele conseguiu um bom emprego no banco. Dizia que estava batalhando por uma casa e que nos levaria para fora daqui. Na semana passada eu estava sentado neste sofá e ele subiu correndo as escadas. Falou: “Pai, tenho uma boa notícia. Recebi uma promoção e vou ser caixa do banco em fevereiro”. Fiquei contente, disse “que bom”. Mas ele respondeu: “Bom nada, quero chegar a gerente”. Ele também estava na autoescola. Um dia bateu na minha perna e disse: “Pai, vocês vão ter um motorista na família. Vamos viajar muito, para vários lugares”.

Moro de frente para a passarela que caiu. Usamos a passarela todos os dias para pegar ônibus do outro lado da pista, ir ao mercado ou à igreja. Era para ser um caminho de pedestre, mas os motoqueiros passam por cima o tempo todo. Já vi dois caminhões baterem nessa passarela. Numa das vezes, ela chegou a se mexer, mas foi colocada de volta no lugar. Adriano passava por ali todos os dias. Na terça-feira, estava indo trabalhar às 9 da manhã. Ele pegava o ônibus do outro lado. A mãe dele e eu estávamos no andar de cima da casa, terminando uma obra. E o Adriano nunca saía sem ouvir um “vai com Deus” ou um “Deus te abençoe”. Quando terminou de se arrumar, gritou da escada mesmo: “Pai, mãe, estou indo”. Nos despedimos, e fui até o muro da casa ver ele indo embora. Fazia isso por costume. A região já foi muito violenta. Às vezes, quando via de casa alguma movimentação estranha, ligava para ele evitar o caminho.

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Adriano subiu a escada e entrou na passarela. Falei baixinho: “Vai com Deus, meu filho”. E me virei. Foi quando ouvi o estrondo. Tomei um susto. Olhei de volta, e a passarela estava no chão. Então entrei em desespero. Gritei para minha mulher: “A passarela caiu”. Ela começou a gritar também: “Meu filho, meu filho”. E a gente correu lá para baixo. Olhei no meio dos escombros rapidamente e vi que ele não estava ali. Então me deu aquela intuição de olhar dentro do canal que passa entre as duas pistas. O que vi foi uma cena terrível. Meu filho estava lá, jogado dentro do rio, e a água suja cobria seu corpo quase inteiro.

Nisso, dois vizinhos conseguiram descer lá embaixo. Eu gritava: “É meu filho, tira ele daí”. Eles conseguiram tirá-lo do rio, e Adriano ainda estava vivo. Um rapaz ficou conversando com ele, e eu dizia para ele aguentar firme, que o bombeiro estava chegando. Mas chegou o bombeiro, sem maca, sem corda, sem equipamento nenhum para reanimar a pessoa. Ele não conseguiu ajudar. Depois vieram outros bombeiros, também sem equipamento. Por fim, usaram a corda dos moradores e amarram meu filho pelo peito, para subi-lo. Como Adriano era um menino grande e pesado, tiveram muita dificuldade. Eu estava animado, porque meu filho já estava ali em cima, veio uma médica e aplicou uma injeção nele. Pensei: “Meu filho vai sair dessa, ele vai sair dessa”. Mas logo veio um dos comandantes dos bombeiros, pegou o pulso dele, e falou em voz alta: “Parte para outro, este daqui é saco preto”. Tomei um choque. Ele falou isso alto, eu escutei, todo mundo que estava do meu lado escutou. Nunca vou me esquecer desta frase: “Este daqui é saco preto”.

Eles colocaram Adriano no chão. Depois colocaram um saco preto em cima dele. Eu não podia acreditar, Adriano estava morto ali do meu lado. Fiquei com a mão em cima dele, esperando. Me disseram que eu deveria sair, porque vinha um trator para remover a estrutura da passarela e eu poderia atrapalhar o resgate. Eu dizia que era meu filho, que precisava ficar ao lado dele, mas eles me levaram para o outro lado. Só me avisaram para onde levariam o corpo. Daí voltei para casa com minha mulher, e começamos a arrumar a documentação para o enterro.

Ninguém merece uma tragédia dessas. Você dá uma vida para criar seu filho, e chegam alguns incompetentes e tiram a vida desse garoto que só queria vencer e só queria ajudar as pessoas. Cada lugar em que ele colocava a mão, seu quarto, seu cachorro, sua mochila, tudo está aqui ainda, parece que é um pedaço dele também. Se eu tivesse de fazer tudo de novo, sacrificar minha vida para ajudá-lo a estudar, faria tudo novamente, mesmo na minha idade. Mas só queria que ele estivesse aqui de volta. 






Fonte: Época

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