Carinho de familiares e padrinhos e solidariedade cercam órfãos da Kiss
Carinho redobrado, solidariedade e uma legião de padrinhos marcam a vida das crianças que perderam o pai ou a mãe no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, em 27 de janeiro de 2013. Quase um ano depois, familiares e amigos cercam de mimos os órfãos da tragédia, que matou 242 pessoas. O G1 conta nesta terça-feira (21) a história de quatro crianças que se apoiam no amor dos mais próximos para diminuir a saudade que ainda não entendem bem.
Desta segunda (20) até sexta-feira (24), o G1 conta como vivem sobreviventes e familiares de vítimas da boate Kiss e o que mudou na lei, nos hábitos e na vida das pessoas um ano depois do incêndio.
A tragédia de 27 de janeiro de 2013 matou 242 pessoas.
Esse é o caso da pequena Joanna Treulieb, que não teve oportunidade de conhecer o pai, João Aluísio Treulieb, chefe do bar da boate Kiss e uma das vítimas do incêndio. No dia em que completou 10 meses de vida, a menina era o centro das atenções de uma sala repleta de convidados. Seis padrinhos e seis madrinhas disputavam o carinho dela no apartamento da mãe, a advogada Patrícia Carvalho. O grupo era apenas uma parte da legião de 20 "dindos" e "dindas" de Joanna.
"Recebemos a visita de, no mínimo, duas pessoas por dia. Logo depois do acidente, não comportava todo mundo na sala. As pessoas se aproximaram e nunca deixaram de vir. Todos participam, brincam com a Joanna", conta Patrícia ao G1.
A ideia do grande número de padrinhos para a criança partiu dos pais dela, quando os Treulieb ainda planejavam quem convidariam para o "cargo". "A escolha de várias pessoas tinha sido nossa, em conjunto. Ainda estávamos na fase de decisão", diz a mãe.
A jornalista Luciane Treulieb, de 30 anos, é a única tia da criança. Irmã do pai de Joanna, ela morou em Buenos Aires até agosto de 2012, quando foi aprovada em um concurso na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Na época, soube que o irmão teria um bebê. "Fiquei feliz por poder acompanhar [esse processo]", lembra.
Após o dia 27 de janeiro, Luciane esteve sempre ao lado de Patrícia. Com a ausência do irmão, foi ela quem entrou na sala do parto com a cunhada. "Ainda parece mentira. É surreal que a Joanna esteja aqui e ele, não", lamenta Luciane, ao lembrar da tragédia. "Ficamos com uma lembrança dele. E ela é parecida, acabamos percebendo ele nela. Não tem como não notar."
O bancário Diego Bacin Raymundo, de 30 anos, amigo de infância de João Aluísio, lamenta não ter ouvido do próprio pai da menina o convite para ser padrinho dela. Quando Patrícia ainda estava grávida, João Aluísio chegou a convidar o bancário para "tomar umas cervejas". Devido à rotina atribulada no trabalho, Diego não conseguiu encontrar o amigo. Após a tragédia, quando velava o corpo do chefe do bar da Kiss, o bancário ouviu de Patrícia o motivo da conversa planejada: ele havia sido escolhido para ser um dos padrinhos de Joanna.
"Isso me fez rever uma coisa na vida, não podemos deixar para amanhã o que podemos fazer hoje", analisa.
Outro amigo de infância de João Aluísio na "legião" de padrinhos é o diretor de marketing Vinícius Brum Silva, de 26 anos. Há ainda ex-colegas de trabalho da vítima: o psicólogo Luismar da Rosa Model, de 26 anos, e a estudante Fernanda Dias, de 20. Ele sobreviveu ao incêndio na Kiss e ela havia deixado o trabalho na casa noturna sete meses antes.
Luismar conta que saiu da boate naquele dia ainda consciente, mas não viu João Aluísio. O psicólogo chegou a se afastar do local por temer uma explosão, mas retornou com outros colegas para procurar conhecidos. "Passados alguns minutos, começamos a ter certeza [da morte de João Aluísio]. A preocupação seria sobre quem iria avisar a Pati", relembra Luismar.
Mas Patrícia já acompanhava a situação. Segundo outro padrinho de Joanna, o empresário Marcio Simon, de 37 anos, a mãe da menina ligou para ele no dia da tragédia. "Tentei conversar com ela, mas ela não sabia ainda [da morte do marido]. Me disse que não achava o 'nosso amiguinho'", recorda Marcio, que é marido de Diele Estivalete Cunha, de 30 anos, uma das madrinhas da criança.
A lista de padrinhos também inclui amigos de Patrícia. O empresário André Luiz Farias, de 46 anos, convive há mais de 20 com a advogada e acompanhou todo o relacionamento dela com o marido. Já a administradora Naiane Zanetti, de 35 anos, também mantém um vínculo de longa data com a mãe de Joanna. A psicóloga Ariela Quartiero, de 31 anos, e a advogada Mariana Mariano Rocha, de 34, por sua vez, eram amigas do casal.
"No momento em que fiquei sabendo [da morte], entrei em contato com a Patrícia e, desde então, continuo acompanhando as duas", conta Ariela, que também faz um trabalho voluntário com sobreviventes e familiares de vítimas da boate Kiss.
Os "dindos" e "dindas" de Joanna entendem que não são capazes de suprir a ausência do pai, que a criança não conheceu. No entanto, garantem que a menina nunca estará sozinha. "Todas as pessoas vêm para somar. Cada um tem uma história para contar, um momento em que viveu com o pai dela", destaca a mãe.
Solidariedade ajuda família humilde em Itaara
Em um casebre de madeira em Itaara, a 11 km de Santa Maria, vivem as primas Jennifer, de 7 anos, e Eduarda, de 5. A mais velha é filha de Francielle Vargas, e a segunda, de Cecília Vargas. As duas irmãs morreram na boate Kiss. Quem cuida das crianças são os avós maternos, o jardineiro Vlademir Antonio Vargas e a dona de casa Iracema Teixeira Soares, ambos de 52 anos. Também mora com eles a estudante Camila, de 17 anos, filha caçula do casal.
O lar é pequeno e aparenta ser frágil. A porta de entrada dá acesso à cozinha. O assoalho se move com a força dos passos, e a geladeira treme com a oscilação do chão. "Não dá bola, que é assim mesmo", avisa Vlademir, sorrindo, e mostrando símbolos religiosos e armários com roupas que pertenciam às filhas mortas há quase um ano.
As meninas não se importam com a situação da casa. Em uma manhã ensolarada, brincavam pela casa com outras crianças do balneário de Parque Pinhal, que pertence a Itaara, onde Vlademir sustenta a família trabalhando como caseiro para donos de casas de veraneio próximas.
O sorriso ingênuo das duas crianças desapareceu quando o jardineiro mostrava um quadro com uma foto delas ao lado das mães. Com um semblante sério, Jennifer e Eduarda pararam para observar a imagem, sem falar nada. Os olhos da avó se encheram de lágrimas. "Sinto uma saudade horrível das minhas filhas", afirma.
O casebre contrasta com uma construção inacabada no fundo do terreno, que simboliza o maior sonho de Vlademir: dar uma moradia mais confortável à família. Ao observar a obra, o jardineiro mostra gratidão. "Tudo isso que você está vendo, tudinho mesmo, foi feito com dinheiro que me depositaram", revela, enquanto aponta para a casa com quatro cômodos que tem a estrutura pronta, inclusive o telhado.
A história da humilde família foi contada em junho do ano passado pelo G1 e pela RBS TV, além de jornais locais. Desde então, a família recebeu doações, parte em dinheiro, parte em material de construção. Vlademir parou de cuidar de jardins, usou a arrecadação para contratar um pedreiro e trabalhou como servente do próprio funcionário. Os alimentos que chegavam eram parte das doações, e a casa foi projetada de forma gratuita por um grupo de arquitetas de Santa Maria.
Construção ainda precisa de reboque e instalação de redes elétrica e hidráulica (Foto: Felipe Truda/G1)
Construção em Itaara ainda precisa de reboco e instalação das redes elétrica e hidráulica (Foto: Felipe Truda/G1)
"Um homem de uma igreja me deu 9 mil tijolos, mas isso não é mais do que aquele que me deu um saco de cimento. Não tenho nem palavras. Lembro de cada um da mesma forma. Posso dizer que Deus existe", conta Vlademir.
Em janeiro deste ano, no entanto, as doações pararam de chegar. A obra parou. Para que a família possa deixar o casebre de madeira, ainda faltam o reboco, a instalação hidráulica e a rede elétrica. "A prioridade é rebocar. Ainda tem a porta da garagem para colocar, mas isso é o de menos", diz o jardineiro.
Maturidade de Júlia ajuda avó e tia a superar dor
A paixão por animais e a mania de limpeza de Júlia, de 7 anos, fazem a avó, a aposentada Erci Vasconcellos, de 60 anos, e a tia, a estudante Vanessa Vasconcellos, de 24, se lembrar da mãe da menina, Letícia Vasconcellos, de 36 anos.
Letícia foi recepcionista da boate Kiss e morreu no incêndio. Hoje, Júlia mora com a avó, a tia e o avô, o vendedor Renato Vasconcellos, na mesma casa onde vivia com a mãe e o irmão Vinícius, de 14 anos, que acabou se mudando para a casa do pai após a morte de Letícia.
"Sempre falamos que ela é como a mãe. Temos um pátio enorme e ela varre tudo. Eu digo para ela parar, pois é muito nova. E a Letícia era bem assim. E a Júlia ainda me diz para não esquecer meus remédios. Sempre digo que foi Deus que a mandou para me cuidar", diz Erci, que precisa de medicamentos para tratar artrite e artrose.
Foi Deus que a mandou para me cuidar"
Erci Vasconcellos, avó de Júlia, de sete anos
Sentada ao lado da avó, a menina acompanhava atentamente a conversa com o G1, sem dizer uma palavra. Ouvia sobre a morte da mãe, as dificuldades financeiras e o trauma que impede a tia de conseguir um novo emprego – Vanessa trabalhou como relações públicas na Kiss até um mês antes da tragédia. Desde que Júlia perdeu a mãe, a maturidade da criança surpreende diariamente os familiares.
"Ela é um espírito de luz. Não é fácil, nunca ninguém imaginaria isso", diz a avó. "No início, eu chorava muito, ela corria para buscar um lenço e me confortava", conta Erci.
No meio da conversa, Júlia rapidamente se levantou do sofá e saiu em direção à porta que dá acesso ao pátio. Do lado de fora, pegou um gato no colo, voltou para a porta da sala e sorriu para a avó e a tia. "A mãe dela também adorava gatos. Sempre digo que ela é a segunda Letícia", diz a aposentada.
Explicar para a criança que a mãe morreu não foi fácil. Foi necessária uma conversa prévia com psicólogos sobre o assunto. Segundo Erci, a menina já sabia o significado da morte. "Eu já vinha falando há muito tempo que, quando uma pessoa morre, [a vida] não acaba, para prepará-la para a minha morte. Eu expliquei a parte do espírito, que um dia vamos nos encontrar", afirma a vó.
A aposentada acredita que a forte ligação com a neta tem ajudado Júlia a superar o trauma. "Ninguém vai suprir uma mãe, mas ela já era muito apegada comigo", revela.
Erci diz sentir falta do neto mais velho, que, por causa das férias de verão, não tem ido visitá-la. "Ele estuda aqui perto e, quando tem aula, vem almoçar aqui. Ele sempre diz que o feijão da vó é o melhor que tem", diz, orgulhosa. A presença da neta, no entanto, é o maior conforto para Erci. "Se eu não tivesse a Júlia, estaria tudo acabado", conta.
Erci, Vanessa e a pequena Júlia Vasconcellos: maturidade da menina surpreende (Foto: Felipe Truda/G1)
Erci, Vanessa e a pequena Júlia: maturidade da menina surpreende a família (Foto: Felipe Truda/G1)
Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, na Região Central do Rio Grande do Sul, ocorreu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. A tragédia matou 242 pessoas, sendo a maioria por asfixia, e deixou mais de 630 feridos.
O fogo teve início durante uma apresentação da banda Gurizada Fandangueira e se espalhou rapidamente pela casa noturna, localizada na Rua dos Andradas, 1.925.
O local tinha capacidade para 691 pessoas, mas a suspeita é que mais de 800 estivessem no interior do estabelecimento.
Os principais fatores que contribuíram para a tragédia, segundo a polícia, são: o material empregado para isolamento acústico (espuma irregular), uso de sinalizador em ambiente fechado, saída única, indício de superlotação, falhas no extintor e exaustão de ar inadequada.
Ainda estão em andamento dois processos criminais contra oito réus, sendo quatro por homicídio doloso (quando há intenção de matar) e tentativa de homicídio, e os outros quatro por falso testemunho e fraude processual. Os trabalhos estão sendo conduzidos pelo juiz Ulysses Fonseca Louzada. Sete bombeiros também estão respondendo pelo incêndio na Justiça Militar. O número inicial era oito, mas um deles fez acordo e deixou de ser réu.
Entre as pessoas que respondem por homicídio doloso (com intenção), na modalidade de "dolo eventual", estão os sócios da boate Kiss, Elissandro Spohr (Kiko) e Mauro Hoffmann, além de dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos e o funcionário Luciano Bonilha Leão. Os quatro chegaram a ser presos nos dias seguintes ao incêndio, mas a Justiça concedeu liberdade provisória aos quatro em maio do ano passado. Entre os bombeiros investigados, está Moisés da Silva Fuchs, que exerceu a função de comandante do 4° Comando Regional de Bombeiros (CRB) de Santa Maria.
Atualmente, a Justiça está em fase de recolher depoimentos dos sobreviventes da tragédia. O próximo passo será ouvir testemunhas. Os réus serão os últimos a falar sobre o incêndio ao juiz. Quando essa fase for finalizada, Louzada deverá fazer a pronúncia, que é considerada uma etapa intermediária do processo.
Se o magistrado "pronunciar" o réu, ele vai a júri (a pronúncia é a ordem para ir a júri). Outra possibilidade é a chamada desclassificação, quando o juiz não manda o réu para júri, mas reconhece que houve algum tipo de crime. Nesse caso, a causa será julgada sem júri. Também existe a chance de absolvição sumária dos réus. Em todas as hipóteses, cabe recurso.
No âmbito das investigações, três delas estão sendo conduzidas pela Polícia Civil. Além dos documentos sobre as licenças concedidas à boate Kiss, um inquérito apura as atividades da empresa Hidramix, responsável pela instalação de barras antipânico na boate, e outro analisa uma suposta fraude no documento de estudo de impacto na vizinhança do prédio onde ficava a casa noturna. O Ministério Público, por sua vez, investiga as responsabilidades de servidores municipais na tragédia.
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