Direitos humanos às escuras
A manifestação de Amorim - que parece ter-se esquecido da importância das pressões internacionais para o fim do apartheid na África do Sul e das ditaduras militares na América do Sul - indica que continuamos a distanciar-nos da política externa seguida pelo País nessa área, desde o retorno à democracia até o governo Lula.
Nesse período não praticamos a diplomacia do "dedo em riste" nem deixamos de reconhecer com realismo os limites da ação externa para proteção dos direitos humanos, muito menos de ponderar pragmaticamente os nossos interesses econômicos e políticos. No entanto, marcamos com clareza o compromisso com o valor universal dos direitos humanos. Subscrevemos um conjunto de convenções internacionais (a começar pela Convenção Contra a Tortura) que nos havíamos recusado a assinar sob a ditadura militar. E inscrevemos na Constituição a determinação legal que dá prevalência aos direitos humanos na condução da política externa.
No atual governo acumulam-se sinais de mudança. Discretos, mas significativos, na atuação do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Visíveis nas ações e nas palavras dos principais formuladores da política externa, a começar pelo presidente da República.
A nova orientação da política externa obedece a um diagnóstico segundo o qual o tema dos direitos humanos é manipulado pelas grandes potências ocidentais. Ninguém o exprime melhor do que Samuel Pinheiro Guimarães. Para o ex-segundo homem do Itamaraty e hoje ministro de Assuntos Estratégicos, a defesa dos direitos humanos "dissimula, com sua linguagem humanitária e altruísta, as ações táticas das grandes potências em defesa de seus interesses estratégicos". O alvo da crítica são, principalmente, os Estados Unidos, cuja hegemonia no sistema internacional representaria um dos principais obstáculos, se não ameaça, à projeção do Brasil na cena global, como se lê em seu livro Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes. Ou seja, a defesa dos direitos humanos, assim como a defesa da não-proliferação nuclear, presta-se, na prática, ao congelamento do poder mundial tal como hoje se distribui. O resto seria retórica, mal ou bem-intencionada.
Se queremos e podemos tornar-nos um dos gigantes do mundo, e se a defesa dos direitos humanos não é senão a forma como os interesses das "potências ocidentais" se travestem em preocupações humanitárias, o objetivo do Brasil deve ser o de remover a maquiagem ideológica que recobre o tema nos fóruns multilaterais. Não para afirmar o valor em si, e nossas credenciais diferenciadas em relação a ele, mas para relegá-lo a um plano secundário. Quem sabe, com o propósito de livrar-nos dos constrangimentos que a deliberação à luz do dia sobre eventuais casos de violação dos direitos humanos pode impor à nossa movimentação internacional, agora que, acredita-se, nos estamos tornando um dos gigantes do planeta.
Fazer alianças pontuais para questionar a distribuição de poder atual no mundo é objetivo legítimo e oportuno. Ele vem sendo, porém, perseguido ao preço da leniência com violadores contumazes dos direitos humanos. Fica a impressão, certa ou errada, de que a proposta defendida por Amorim tem entre suas motivações a de reduzir o dano moral que a política externa do atual governo na área dos direitos humanos provoca na imagem internacional do Brasil. Figurativamente, em vez de repensar nossa atuação em cena, preferimos apagar a luz do palco.
Para ser efetiva, a proteção internacional dos direitos humanos precisa do olhar vigilante, da ação ruidosa, às vezes equivocada, mas sempre indispensável, de ONGs ligadas ao tema. Não é preciso idealizar o que seja esse embrião de uma sociedade civil internacional para reconhecer sua importância, tanto mais agora que países com regimes autoritários e repressivos ganham peso na balança de poder global. Estaríamos querendo nos proteger desse olhar para mais livremente manejar nossos interesses econômicos e nossa projeção de poder na nova ordem multipolar?
A visão de mundo expressa por Samuel Pinheiro Guimarães é compartilhada por grande parte das forças políticas de sustentação do atual governo. Comunga o PT o diagnóstico de que a defesa dos direitos humanos é parte da hegemonia norte-americana. O antiamericanismo é um elemento de coesão no campo das esquerdas menos ou não-democráticas, sobretudo na América Latina, onde o partido construiu uma ampla rede de alianças. Serve para defender as violações dos direitos humanos em Cuba e para justificar Chávez e o chavismo. Explica também certa simpatia por grupos como o Hezbollah e o Hamas e a complacência com Ahmadinejad.
Tem razão quem diz que os Estados Unidos não nos devem servir de modelo. Em muitas ocasiões, desde que se tornou uma potência econômica e militar, a atuação externa desse país conflitou com os valores democráticos que professa. A questão, porém, não se resume a questionar as credenciais dos Estados Unidos. O fato de tais credenciais serem questionáveis não nos libera de responder à pergunta e prestar contas sobre o lugar que valores fundamentais como a defesa dos direitos humanos terão em nossa política externa, agora que projetamos nossos interesses e nossas aspirações de poder em escala global.
Será que para sermos gigantes precisamos apequenar-nos na sustentação de valores que devem marcar a nossa identidade internacional?
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