Geração pós-real conhece inflação em reprise de "Vale Tudo"
Virou ficção o Brasil da inflação galopante dos anos 1980, quando sucessivos planos econômicos surgiam da noite para o dia após uma infinidade de feriados bancários, congelamento de preços, tablitas, câmbio negro (glossário à direita) e corte nos zeros das moedas.
Para toda uma geração de jovens adultos, saber que os pais ligavam diariamente para o gerente do banco aplicar o dinheiro no "over" soa tão bizarro como as ombreiras e as cabeleiras dos personagens sem caráter de "Vale Tudo", a novela de Gilberto Braga passada em 1988 (IGP-M de 20% ao mês) e sucesso nas madrugadas de 2010 (IPCA de 5,9% ao ano).
Assustam as passagens na novela em que os personagens falam que ganham 400 mil por mês e que isso não é suficiente para o supermercado, o que era comum até o Real, em 1994.
Na novela, a cozinheira Raquel Acioly (Regina Duarte) faz um empréstimo com juros de 30% -ao mês- para abrir seu restaurante.
A escola de Bruno, filho do operador de telex Ivan Mei- relles (Antonio Fagundes), reajustou a mensalidade em 30%. "Como? Vai subir de novo? Subiu 28% dois meses atrás", pergunta a secretária Leila (Cassia Kiss).
Brasileiros nascidos em 1994 têm hoje 16 anos e nunca conviveram com inflação muito acima de 10% ao ano.
Mesmo quem tem 30 anos viveu mais da metade da vida após a estabilização.
"Meus estagiários que não viveram isso não fazem ideia. É nonsense. São memórias que vão se apagando", disse Salomão Quadros, economista da FGV.
"A meta do governo era que a inflação ficasse em 10% ao mês", disse Mailson da Nóbrega, ministro em 1989, quando terminou a novela. "Até os anos 1980, havia consenso de que uma inflaçãozinha não fazia mal para ninguém. Só com a democracia que houve um apoio popular contra a inflação."
Heron do Carmo, economista que "calculou" o IPC da Fipe nos anos 1980, conta que os açougues trabalhavam com as portas fechadas durante os congelamentos.
ÁGIO
"O carro usado custava mais do que o zero. Tudo que tivesse algum valor tinha ágio. O primeiro congelamento pegou todo mundo no contrapé, mas o segundo não pegou ninguém", disse.
Para se protegerem, os brasileiros corriam ao dólar "black", como os personagens do núcleo rico da novela. "Computador, viajar ao exterior tinham custo proibitivo. Uísque era só nacional: Old Eight. Vinho era Château Duvalier. Até o ambiente cultural em São Paulo era provinciano, não havia essa profusão de casas noturnas."
"Do ponto de vista econômico, o Brasil era um país socialista. A produção estava na mão do Estado. Não era muito diferente da Rússia, dos países do Leste Europeu. A gente tinha uma calça jeans melhor porque era produzida aqui", disse Heron.
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