Os familiares das vítimas do acidente com o voo AF 447, da Air France, têm até esta quarta-feira (1º) para entrar com ações de indenização, se quiserem evitar contestação de prazo no futuro. É o que afirmam advogados ouvidos pelo G1 sobre uma polêmica envolvendo as normas relacionadas à responsabilidade civil aplicáveis ao caso. O acidente com o Airbus A330, que matou 228 pessoas em 2009, completa dois anos nesta quarta.
Pelo Código Brasileiro de Aeronáutica, de 1989, há um prazo de dois anos, contados a partir da data do acidente, para entrar com a ação. A norma prevê ainda um teto limite ao valor da indenização --calculado com base em Obrigações do Tesouro Nacional (OTN). Mas, para especialistas, deve ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor, com um prazo de cinco anos e sem limite de valor.
A Air France, no entanto, vem utilizando a Convenção de Montreal --que regula o transporte aéreo internacional-- em sua defesa em processos já em tramitação sobre o acidente, que também prevê prescrição em dois anos e limite de valor.
“Se prevalecer esse argumento da Air France, há risco para os pedidos de indenização que forem feitos a partir do dia 1º. O Brasil é signatário do tratado”, afirma João Tancredo, que representa familiares de 15 vítimas brasileiras, de um total de 59 que morreram no acidente.
“Se for somente a lei brasileira, não há problema, porque é um equívoco aplicar o Código de Aeronáutica. Ele já está em grande parte revogado pelo Código de Defesa do Consumidor, que é posterior. Nem a Air France argumenta isso, porque o Supremo [Tribunal Federal] já entendeu assim”, avalia o advogado, que cita ainda o Código Civil, com um prazo genérico para ações de indenização, de três anos. "O problema é que pode se entender que o Tratado de Montreal se sobrepõe à lei brasileira."
O advogado afirma que, para evitar contestações sobre a data das ações, o melhor é apresentar uma outra, chamada cautelar de interrupção de prescrição, usada para o caso de o interessado não ter reunido os documentos necessários para apresentar a ação indenizatória. “Eu faço a defesa intransigente que o aplicável é o Código do Consumidor ou Código Civil. Além disso, a legislação brasileira não prevê esse limite de valor. Mas não posso deixar o cliente correndo risco”, afirma ele, que conta ter sido procurado por familiares de vítimas do exterior para protocolar esse tipo de ação nesta semana. “Fiz seis até agora, de estrangeiros.”
Divisor de águas
Para o advogado Luiz Roberto de Arruda Sampaio, que atuou em defesa de famílias das vítimas da tragédia envolvendo o Fokker-100 da TAM, "com certeza, há prevalência do Tratado de Montreal". "É possível, porém, contestar o limite de valor de indenização, porque, se quiser aplicar a convenção, o limite de indenização só ocorre sem discussão de culpa. Quando tem culpa, e, nesse caso, está evidente que teve culpa, não cabe limite”, considera.
"Nós fomos a experiência", diz Sandra Assali, que
perdeu o marido no acidente da TAM em 1996 e
preside a primeira associação de vítimas de
acidentes do país (Foto: Fabrício Costa/G1)
O acidente com o voo 402 da TAM, que caiu no bairro do Jabaquara, na capital paulista, logo após a decolagem do Aeroporto de Congonhas, deixou 99 mortos em 1996. As indenizações demoraram ao menos dez anos para serem pagas, e os últimos casos foram encerrados entre 2008 e 2009, segundo Sandra Assali, presidente da Associação Brasileira de Parentes e Amigos de Vítimas de Acidentes Aéreos. Ela perdeu o marido no acidente, provocado por uma sequência de falhas na aeronave.
"Nós fomos a experiência. Não existia uma referência anterior. Fizemos a primeira associação de vítimas, foi o primeiro grande acidente que marcou. Mudou toda uma mentalidade. Em 2007, a própria TAM procurou as famílias e apresentou um acordo mais razoável”, afirma ela, referindo-se à segunda tragédia da companhia, quando um Airbus ultrapassou a pista de Congonhas, chocando-se com um depósito, causando 199 mortes.
"Aquele caso foi um grande divisor de águas, inaugurou parâmetros de indenização razoáveis, uma série de vantagens que antigamente não havia. A Justiça tem melhorado com o passar do tempo, não havia legislação. Hoje, tem indenização para irmão da vítima. Houve uma evolução muito grande”, complementa o advogado.
Para Sampaio, ainda é prematuro dizer se os parentes das vítimas do AF 447 poderão responsabilizar os fabricantes dos pitots que teriam causado a tragédia, mas é uma possibilidade. “Se o familiar quiser alegar responsabilidade objetiva, tem que esperar a conclusão das investigações e a apuração dos culpados. Ainda é cedo para apontar responsáveis. Pessoalmente, não acredito nesse prazo prescricional de dois anos, mas acho que é bom não correr risco. Acho que deveriam entrar com a ação já”, afirma.
No caso da TAM, houve uma tentativa de processo contra a fabricante de uma das peças da aeronave, que terminou em acordo extrajudicial. Mas, mesmo com o pagamento, Sandra não recomenda que as famílias tentem buscar reparação no exterior.
"Não vale a pena, porque você consegue hoje aqui um valor mais justo, com menos tempo, sem tanto desgaste. A não ser que a família não concorde", diz. "A companhia não quer sua imagem arranhada. Casos anteriores são referência, já se chegou a bons valores", orienta.
Ações em andamento
O advogado das vítimas do voo da Air France afirma não poder revelar o total de acordos feitos com a empresa, em razão da confidencialidade, mas, até o momento, há aquelas em que não houve audiência inicial, seis sentenças e uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro favoráveis a seus clientes.
Na decisão mais recente, o TJ negou o pedido da companhia francesa de limitar o valor pago em 300 mil euros, por meio do Tratado de Montreal. Os desembargadores aumentaram, de R$ 510 mil para R$ 600 mil, a indenização aos pais de Luciana Clarkson Seba, e, de R$ 102 mil para 200 mil, aos avós.
Já em 13 ações, houve decisão apenas em tutela antecipada, garantindo aos parentes tratamento médico, com duas consultas semanais a um psicólogo e uma mensal em psiquiatra; medicamentos, ao custo médio de sete salários mínimos mensais por familiar; e o pagamento de pensão mensal, proporcional aos ganhos e levando em conta a sobrevida provável da vítima.
“Entramos com a antecipação de tutela, para evitar a demora, que mais injustiça faz com a vítima. No caso da Air France, não tem que provar culpado. É contrato de transporte. Tem que provar que era passageiro e que sofreu um dano. Não tem que provar que teve culpa.”
"Ninguém quer ficar milionário. Quer o que é justo é para poder criar os filhos, dar educação. É manter o que existia. Hoje você tem esses exemplos a sentar numa mesa de acordo”, conclui Sandra.
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