Saúde do Brasil vive processo de americanização, diz Temporão
Recém empossado diretor de um instituto internacional que tem como objetivo buscar soluções para a saúde pública dos 12 países da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), o ex-ministro José Gomes Temporão vê em curso um processo de "americanização" do setor no Brasil.
Para ele, a falta de uma fonte estável de recursos faz com que as famílias e as empresas assumam cada vez mais um papel que deveria ser do Estado.
Sanitarista de formação, Temporão, 59, avalia que seu maior mérito nos três anos e dez meses como ministro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi colocar a saúde numa "dimensão política". Filiado ao PMDB, ele cogita ir para o PSB e não descarta ser candidato no futuro.
Atualmente, além de comandar o Isags (Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde), que recebeu investimentos federais de cerca de R$ 1 milhão, mantém vínculos com a Fiocruz (onde ingressou há 31 anos) e integra uma equipe internacional de avaliação do sistema de saúde da China, que estuda reformas para o setor.
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Folha - Por que criar o Isags?
José Gomes Temporão - A saúde vem se tornando cada vez mais importante em termos globais. Cerca de 30% de toda a cooperação que o governo brasileiro faz com outros países é em questões de saúde. O Brasil desenvolveu a cooperação Sul-Sul, aumentou a participação na OMS, exportou programas inovadores.
O Isags expressa uma vitória importante: colocamos a saúde como tema prioritário na agenda política do continente. Queremos que funcione como catalisador de iniciativas, como potencializador de tecnologias, colocando esse conhecimento à disposição dos ministérios da saúde do continente.
No ano passado, a OMS divulgou que doenças tropicais que afetam o continente, como a dengue, atingem um bilhão de pessoas no mundo, mas são negligenciadas pela indústria farmacêutica. Como enfrentar isso?
O Isags e a Unasul vão fazer um trabalho político para avançar nessa área. Não apenas no caso das doenças ditas negligenciadas, mas também no das doenças que, no momento, são as que mais matam em nossos países: diabetes, hipertensão arterial, acidente vascular cerebral, infarto agudo do miocárdio, câncer...
Vamos entrar forte na gestão de tecnologias de saúde. Um exemplo: há uma necessidade de colocar equipamentos de radioterapia, para tratamento de câncer, no continente. Por que não fazer uma integração entre os países para uma aquisição continental, negociando com os fornecedores e reduzindo custos? Por que não fazer parcerias no campo da inovação, da pesquisa e do desenvolvimento?
A saúde é sempre uma das áreas mais mal avaliadas dos governos. Por que é tão difícil elevar a qualidade do SUS?
São múltiplos os aspectos. Um é a especificidade da saúde, que não pode esperar. Uma pessoa, em situação de sofrimento, precisa ser acolhida, e nem sempre isso é possível na escala em que as pessoas demandam.
O segundo aspecto é financeiro. O sistema de saúde brasileiro sofre de um problema crônico que já dura 15 anos, que é o subfinanciamento, que nos empurra gradualmente para uma espécie de americanização do sistema de saúde e leva à degradação dos serviços.
Por quê?
O Brasil gasta aproximadamente 8% do PIB em saúde. Quando se olha a divisão entre gasto público e privado, o público é apenas 38% do total. Quem está financiando a saúde no Brasil são as famílias, principalmente, e as empresas. O gasto per capita das famílias de classe média que têm planos é pelo menos duas vezes e meia maior do que o do SUS --e o SUS atua da promoção ao transplante.
O sr. sempre defendeu a regulamentação da Emenda 29. Nesse ano, com a relação entre Congresso e Executivo estremecida, o tema voltou à tona...
Na campanha, a então candidata Dilma afirmou que era uma questão de que ia tratar pessoalmente. É claro que, quando você vira presidente e a dinâmica das relações do Congresso começa a acontecer, as coisas mudam. Tenho certeza que a presidenta continua preocupada.
O que acha da decisão do governo paulista de destinar até 25% das vagas em hospitais públicos para pacientes de planos?
Sou totalmente contra. Essa medida traz o risco de criar uma dupla porta. Não sou contra as pessoas que têm planos usarem esse serviço. Desde que o SUS seja ressarcido pelo plano. Sem criar uma estrutura para atender um e uma estrutura para atender outro. Temos que construir modelos que reduzam as diferenças, não que as aprofundem.
Qual sua principal conquista e sua principal derrota à frente do ministério?
A maior conquista foi ter recolocado a saúde pública numa dimensão política, numa perspectiva ampla. Com múltiplos temas: a questão da sexualidade, do aborto, da quebra de patente, da gestão, da informação, da educação, da promoção da saúde. A derrota foi não ter conseguido regulamentar a emenda 29.
Por um lado, a tecnologia avança numa velocidade incrível; por outro, a população envelhece também de forma rápida. É possível manter um sistema de saúde universal que dê conta de atender essas demandas?
Essa é a grande preocupação de todo o mundo. Pessoas vivendo mais significa mais doença crônica. E doença crônica, mais tecnologia de diagnóstico, novas drogas. Por outro lado, estamos num processo de transformação cultural. A internet virou o doutor Google. É um processo muito complexo, que cria novas demandas. A questão central hoje é a política de incorporação de tecnologias em saúde.
É impossível imaginar um cenário com tudo para todos, sem critério e sem controle. O correto é oferecer tudo o que for técnica e cientificamente adequado a custos compatíveis para todos.
O sr. viu retrocesso na discussão sobre aborto durante a eleição?
Essa questão só vai ser enfrentada com clareza quando a gente conseguir construir uma consciência na população de que essa não é uma questão da religião, não é uma questão do Estado, é uma questão das mulheres, da sua autonomia. Estou na expectativa da votação pelo Supremo da questão da gravidez de feto anencéfalo, que pode recolocar a questão.
O sr. continua no PMDB?
Sim. Andei conversando com o PSB, mas estou aguardando o quadro político ficar mais desanuviado. É bastante provável que eu vá para o PSB. É um partido que tem mais a ver com minha postura ideológica.
Um partido progressista, com um programa mais à esquerda e novos quadros, como o governador Eduardo Campos [de Pernambuco].
A ideia é disputar cargo eletivo?
Não. Minha agenda hoje é realmente tocar o Isags e continuar minha carreira de sanitarista, trabalhando em saúde pública. Não descarto nenhuma opção mais à frente, mas no momento não.
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