Documentos obtidos por ÉPOCA mostram a luta da juíza contra grupos de extermínio, suspeitos de sua morte
Patrícia Acioli estava no encalço de seus assassinos
A juíza Patrícia Acioli, morta a tiros na porta de sua casa. No alto à direita, cópia da ordem de prisão assinada por ela, no dia de sua morte, contra oito policiais
A audácia dos assassinos da juíza Patrícia Lourival Acioli, de 47 anos, no último dia 11, foi algo inédito na violenta história do Rio de Janeiro. Ao longo de décadas de descalabro e atrocidades vivenciadas pela população fluminense, criminosos nunca haviam ousado matar um magistrado. Além de sem precedentes, o crime foi brutal: 21 tiros foram disparados por homens encapuzados postados diante de sua casa, no bairro de Piratininga, em Niterói, região metropolitana do Rio. Diante do crime, a primeira pergunta era: por quê? Uma análise do trabalho recente da magistrada lança luz sobre os possíveis interesses dos assassinos. Na semana passada, ÉPOCA obteve um conjunto de documentos, vídeos e escutas telefônicas que ajudam a entender por que a juíza, conhecida pela firmeza com que combatia grupos de extermínio, tornou-se um alvo tão visado pelos criminosos.
Em junho último, um rapaz de 18 anos foi morto por policiais militares em São Gonçalo, onde Patrícia comandava a 4ª Vara Criminal. A Promotoria de Justiça diz que os PMs desfizeram a cena do crime. Em seguida, entregaram na delegacia, de “forma fraudulenta”, uma pistola calibre 45, como se a arma tivesse sido usada pela vítima em reação a um flagrante por tráfico de drogas. ÉPOCA obteve cópia da deci-são de Patrícia sobre o caso, provavelmente a última medida contundente da juíza no combate a crimes de execução. Algumas horas antes de morrer, ela decretou a prisão de oito policiais militares suspeitos de assassinar e acobertar a morte do rapaz. A ordem foi escrita à mão, um procedimento comum em processos judiciais para acelerar as ações. A Polícia Civil suspeita que esse grupo de presos possa estar envolvido na morte da juíza.
Na ação contra Patrícia Acioli, um fato chamou a atenção da polícia: os assassinos não se preocuparam em ser discretos. Um policial próximo à investigação percorreu o caminho que a juíza fez pela última vez de carro entre o Fórum de São Gonçalo e o condomínio em que morava, em Piratininga. Verificou diversos pontos em que os bandidos poderiam ter agido sem ser filmados. Mas os criminosos preferiram a entrada do condomínio, onde ficaram expostos a várias câmeras. Três dias antes, um homem havia sido filmado no local, por volta das 23 horas, pedindo informações sobre a rotina da juíza. Policiais encarregados da investigação acreditam que os criminosos se deixaram filmar deliberadamente, num ato de afronta ao Estado.
A ousadia condiz com o comportamento daqueles que foram alvos do trabalho da juíza nos últimos anos. O material obtido por ÉPOCA, parte de uma investigação contra um grupo de extermínio atuante em São Gonçalo, revela que policiais militares sequestravam pessoas, geralmente envolvidas com o tráfico de drogas. Torturavam os reféns. Pediam resgate e, mesmo depois de receber dinheiro e armas como pagamento, matavam as vítimas a tiros. Isso quando não as incendiavam.
Um retrato devastador da realidade que cerca a Polícia Militar do Rio de Janeiro foi descrito por Wanderson da Silva Tavares, o Gordinho, apontado pela polícia como líder do Bonde do Zumbi, um dos grupos de extermínio mais ativos em São Gonçalo. Gordinho foi preso em janeiro, em Guarapari, Epírito Santo, por ordem da juíza Patrícia. Na ocasião, tinha uma lista com 12 nomes, entre os quais o de Patrícia. Se-gundo a Polícia Civil, era uma relação de pessoas marcadas para morrer. Num acordo de delação premiada fechado com a Promotoria de Justiça do Estado, Gor-dinho resolveu contar o que sabia, em troca de uma pena de dez anos de prisão. Sem o acordo, o criminoso poderia ser condenado a 150 anos.
Ao longo de nove páginas, Gordinho relatou ao promotor Paulo Roberto Mello Cunha Jr., em junho deste ano, que quatro policiais militares, também integrantes do Bonde do Zumbi, sequestravam e matavam pessoas supostamente envolvidas com o tráfico. O nome do promotor, que atuava em parceria com Patrícia, também consta da lista. A juíza havia decretado a prisão dos quatro policiais no final de 2010.
Gordinho disse ao promotor que passou a ter contato com os PMs em março do ano passado, na porta do Fórum de São Gonçalo, onde Patrícia trabalhou por mais de dez anos. Conheceu o soldado Rogélio Acácio Ferreira e ficaram amigos a ponto de o policial, segundo relato de Gordinho, dizer: “Quando tiver uma situaçãozinha, conheço uma rapaziada”. A “situaçãozinha” apareceu algum tempo depois. Gordinho marcou uma reunião com Acácio atrás do quartel do 7º Batalhão da PM em São Gonçalo. Estavam presentes os cabos Alexsandro Horffmam Lopes e Alecsandre Nazareth Baiense. Os quatro definiram a missão: sequestrar Bruno Maconha, suposto líder do tráfico numa favela da região.
Depois de entrar na favela e dominar Bruno Maconha, os policiais pediram informação sobre onde estavam dinheiro e armas. “Começaram a dar soco.” Exausto, o traficante capitulou. Entregou cinco granadas e uma metralhadora. O grupo levou o traficante, seu carro (um Gol), as granadas e a arma. Fora da favela, pediram resgate a colegas da vítima. Queriam R$ 50 mil, mas fecharam em R$ 4 mil.
Cheques, dinheiro e joias apreendidos com Gordinho, acusado de liderar um grupo de extermínio em São Gonçalo, Rio de Janeiro
Mesmo com o pagamento, o refém não foi solto. Levado para uma “trilha cheia de mato”, caminhava quando “levou dois tiros na cabeça disparados por Baiense, enquanto Lopes desferiu um tiro de confere (final)”, disse Gordinho. Os quatro dividiram o dinheiro do resgate em partes iguais. Mais tarde, cada um recebeu mais R$ 900 pela venda das granadas. Passaram a aguardar que a metralhadora e o carro de Maconha também pudessem render algum dinheiro. Não houve tempo de vender a metralhadora – um mês depois precisaram usá-la. Com ela, Baiense deu uma rajada para o ar dispersando moradores que tentavam impedir o sequestro de outro envolvido com o tráfico, Daniel Bafo. Não se sabe se o grupo de Bafo chegou a pagar o resgate, mas ele também foi morto.
As histórias de Gordinho não param por aí. Em outro relato, descreveu o destino dado ao traficante Bodinho. Alvo de tortura, Bodinho levou choques “até a bateria acabar”, enquanto o grupo exigia dinheiro. Assim como nos dois outros casos, Bodinho foi morto, mas dessa vez o autor dos dois tiros na cabeça foi o próprio Gordinho. Segundo a investigação, o áudio de uma escuta telefônica, realizada com autorização da Justiça, mostra Lopes falando com uma mulher durante a tortura. Ele diz que se convenceu de que Bodinho não sabia mesmo de nada. “Três horas direto de choque ninguém aguenta. Com certeza iria falar (...). Não falou (em) nenhum momento.” Inspirado em um sucesso do cinema, Gordinho se referiu a ele próprio e a Lopes, em uma gravação do dia 4 de setembro, como “máquina mortífera”. Por ação da polícia e especialmente da juíza Patrícia Acioli, a “máquina” foi desmantelada poucos dias depois. O cabo Lopes foi o primeiro a ser preso, no dia 10 – ÉPOCA obteve um vídeo gravado no momento de sua prisão, decretada pela juíza. As imagens revelam que Patrícia Acioli acompanhava de perto as investigações.
A juíza foi responsável pela prisão de mais de 60 policiais militares nos últimos anos, a maioria acusada de crimes de execução. Seu trabalho levou a uma redução impressionante dos homicídios descritos dentro dos autos de resistência, situação em que a polícia alega que matou porque o acusado reagiu. Em 2007, foram registrados ao menos 20 assassinatos desse tipo em São Gonçalo. A juíza passou a ser rigorosa com casos em que as cenas do crime eram desfeitas. Um ano depois, as mortes em autos de resistência caíram para seis. Neste ano, houve apenas duas.
Há muitos suspeitos do assassinato de Patrícia. O advogado Rafael Batista dos Santos Filho, que defende Wanderson Tavares, o Gordinho, disse não crer no envolvimento de seu cliente. Segundo Santos Filho, Gordinho nunca preparou uma lista de autoridades marcadas para morrer. Seu cliente teria apenas colocado no papel os nomes da juíza, do promotor e de policiais que atuavam no processo contra ele.
Anderson Rollemberg, que defende Acácio e Baiense, disse que os dois negam os crimes e que foram envolvidos apenas porque falavam ao telefone com suspeitos. As escutas, segundo ele, foram mal interpretadas pela polícia. “Não há testemunhas”, afirmou Rollemberg. ÉPOCA não conseguiu falar com o defensor de Lopes.
Na semana passada, surgiu uma polêmica sobre falhas na segurança da magistrada. Em 2007, ela encaminhou uma correspondência ao Tribunal de Justiça (TJ) do Rio reclamando da redução de sua escolta. Presidente do TJ desde fevereiro, o desembargador Manoel Alberto Rebelo dos Santos diz que a juíza não pediu escolta em sua gestão. A administração anterior afirma que a decisão de reduzir a segurança de Patrícia foi normal. Somente agora, depois do crime, o Tribunal de Justiça passou a dedicar maior atenção à 4a Vara Criminal. Designou três juízes para assumi-la e tocar os processos. O titular, Fábio Uchoa, de 52 anos, conta com carro blindado e escolta pessoal.
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