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Crônica do dia: Biografável
Conversava com o professor Victor Gentilli sobre a polêmica das biografias não autorizadas. Ele trabalhou numa pesquisa de 30 biografias e estaria autorizado, com trocadilho.
Estávamos no ponto em que uma boa biografia é um trabalho jornalístico. O autor pagaria pelo malfeito, por calúnia, injúria e difamação, como qualquer repórter. Mas se o biografado fosse a gente, hein? Qual seria a reação? O professor me despachou com essa:
– Não se preocupe que ninguém vai fazer sua biografia não.
De início fiquei aliviado. Depois, inconformado. Não mereço figurar pelo menos numa coletânea de pessoas que escreveram sobre pássaros? Vá lá: um índice das pessoas que já caçaram as avezinhas e mesmo assim escrevem sobre elas. Felix Salten, por exemplo, o alemão autor de “Bambi”, fez um relato sobre suas caçadas.
Nesse Índice dos Cronistas Caçadores de Pássaros me caberiam umas três linhas. E eu gostaria de dar minha versão.
Tenho um amigo muito religioso. Jovem, escondia-se nos galhos de frondosa árvore para precipitar os passarinhos no abismo. É muito provável ter recebido a luz da conversão nesse esconderijo. O que o levaria a aposentar o estilingue e se tornar o homem santo que é. Uma biografia honesta lhe daria a chance de falar de seu arrependimento.
Passarinho. Quem de minha geração não matou um atire a primeira pelotada. Mas numa boa apuração dos fatos para o tal “Índice...” eu teria o direito de ser ouvido. E diria a você, o entrevistador, que já está a minha frente com esse bloquinho:
– Matei sim, não nego. E você? Não come o boi, o pato, o peixe? Você mata de forma terceirizada...
– Mas...
– Sei o que vai dizer: que é pra comer, que é por uma boa causa, que a sua sobrevivência e o bem que você faz ao mundo justificam sua particular carnificina.
– Eu...
– Também posso me justificar. Matei tocado pelo impulso de caçador com que todos nascemos. A rolinha, nem sei se. Não tive a intenção. Peguei um torrão mole, quase esfarelando, e joguei no meio do bando. Eu vi uma esperneando... pode ter sido cena. A meninada foi caminhando e eu junto. Ninguém foi conferir.
– Se me der...
– O catatau eu ganhei de um cunhado. Seria uma desfeita não aceitar. Tinha uns sete anos. Fiquei fora de casa uns dias e quando voltei ele estava sequinho, sem água. Como vês. Não houve a intenção. Eu até confessei esse pecado ao padre. Agora veja só: depois de pagar a penitência, pode-se divulgar minha culpa? Não seria a tal da difamação, que dá processo, indenização?
– Eu só queria...
– Veja bem o caso da cambacica. Na verdade, eu acertei no galho. Eu sempre fui ruim de pontaria. Isso aí você pode colocar. Sempre fui muito ruim, inclusive na bola de gude. Foi no galho, e o sebinho caiu de susto. Corri pra colocar água na cabecinha dele pra ver se revivia. Era o que os meninos diziam. Mas ele não decolou mais.
– Se me permite...
– Tem o caso das pelotas. Eu fabriquei sim muita pelota. Torrava numa frigideira para secar mais depressa. Mas não lucrei com isso. Era para os maiores. Eu queria a amizade deles. Era como se eu cumprisse ordens, entendeu? Num mundo cheio de códigos e regras às vezes não compreensíveis pelo senso comum.
– Se...
– O cardeal foi um acidente. Eu já era grandinho. Tinha consciência ecológica. Comprei na feira e ia dar para um amigo soltar no sítio. Mas deixei a gaiola cair e...
– Senhor, por favor!
– Isso não são atenuantes? Você colocaria isso? Agora, se me dá licença, estou esperando o estofador que vem fazer um orçamento.
– Mas sou eu, senhor. Podemos então conversar? Vai ficar mesmo com o tecido de estampa de passarinho?
Fonte:
A Gazeta
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