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Os novos guetos Romani
Ao longo da história, há acontecimentos que, às vezes, parecem se alinhar perfeitamente com o intuito de desencadear violência racial. No dia 10 de março do ano passado, os moradores da pequena vila de Krásnohorské Podhradie, nas montanhas do leste da Eslováquia, olharam para topo da montanha do centro da cidade para ver seu amado Castelo Krásna Hôrka, uma construção do século XIV, ser engolfado pelas chamas. Quando os bombeiros finalmente conseguiram chegar lá em cima, o teto já tinha caído e três sinos da torre tinham derretido.
No dia seguinte, o porta-voz da polícia anunciou que o fogo tinha sido causado por dois garotos romani de 11 e 12 anos que moravam num gueto nos arredores da cidade. Eles supostamente estavam tentando acender um cigarro no pé da colina, quando uma rajada de vento carregou algumas brasas para o topo, onde o fogo se espalhou pelas madeiras nos terrenos do castelo. Fossem eles os verdadeiros responsáveis ou não, os acusados e suas famílias ficaram aterrorizados — talvez porque, nos últimos dois anos na Eslováquia, de acordo com dados do Centro Europeu de Direitos Romani, foram registrados dezenas de ataques violentos aos romani — o grupo étnico mais conhecido como ciganos. Temendo represálias, os meninos foram mandados para alguns parentes longe da cidade enquanto os homens romani se prepararam durante a noite para defender sua comunidade. No final das contas, os garotos não foram formalmente acusados por serem menores de idade, mas o dano já estava feito: a imagem de garotos ciganos colocando fogo em patrimônios nacionais eslovacos só ajudou a reforçar os preconceitos das etnias brancas contra os cidadãos mais pobres do país. O incêndio do Castelo Krásna Hôrka foi o equivalente ao incêndio do Reichstag em 1933 para a extrema-direita eslovaca — um evento simbólico para justificar a repressão.
No meio de março, voei até a Eslováquia e dirigi até Krásnohorské Podhradie para um comício em memória ao aniversário do incêndio do Krásna Hôrka. Marian Kotleba, ex-professor e líder de extrema-direita do Partido do Povo Nossa Eslováquia — batizado em homenagem ao partido fascista clerical que comandou a República Eslovaca durante a Segunda Guerra Mundial — atrelou suas perspectivas eleitorais sombrias ao Krásna Hôrka e sua posição contra a “criminalidade cigana”.
Na chegada, entrei num lote ao lado do gabinete municipal. Cerca de 150 pessoas — skinheads, alguns cidadãos locais de cara fechada e uns 12 oficiais vestidos de verde — ouviam o discurso dele. Meu tradutor sugeriu estacionar longe da multidão, para que houvesse menos chances de alguém notar a placa húngara do nosso carro alugado. “Se tem uma coisa que os neonazistas gostam menos do que os romani, são os húngaros”, ele disse, em referência ao ressentimento dos eslovacos contra seu vizinho ex-imperialista.
Um homem baixinho, de bigode e roupas pretas, Marian Kotleba estava em frente a um Hummer zebrado azul, cercado por dois skinheads segurando uma enorme bandeira verde do partido. “Não gostamos de como este governo priva pessoas educadas para melhorar a posição de parasitas”, disse ele numa voz firme. Um enorme guindaste amarelo podia ser visto sobre o topo da montanha ao fundo, fazendo reparos no teto do castelo. “Esse castelo queimado é um símbolo de como as coisas vão continuar se o governo não fizer nada sobre essa ameaça em crescimento”, continuou Marian. “Se não fizermos nada a respeito, a situação só vai piorar... Se o Estado não estivesse criando situações surpreendentemente boas para esses extremistas ciganos, o que vocês acham que aconteceria? Eles iriam para a Inglaterra. Eles podem ir para qualquer lugar; eles têm liberdade para se mover. Se eles sofrerem muito na Eslováquia, ninguém vai mantê-los aqui. Ninguém vai sentir falta deles. Não preciso dizer a vocês que eu não sentiria nem um pouco a falta deles.”
Aplausos entusiasmados estouraram na multidão. Nos 20 minutos seguintes, Marian falou contra a União Europeia e defendeu os direitos das “pessoas educadas” — um termo código para a etnia branca do país. O comício terminou com Marian urgindo as pessoas da cidade a “abrirem os olhos e fazer alguma coisa”.
Depois do discurso, conversei com alguns dos skinheads. Um deles, Marek, sugeriu que os romani deveriam ser colocados em reservas “como aquelas que eles têm para os nativos americanos”. Um adolescente, usando roupa camuflada cinza com um patch dizendo “todos os policiais são bastardos” rosnou: “Todos os ciganos deviam ir para a câmara de gás”, antes de ser puxado por neonazistas mais velhos.
Mais tarde, de noite, no que seria o clímax dos eventos do dia, Marian dirigiu seu Hummer até o assentamento romani nos arredores da cidade e ameaçou os moradores. Usando um pedaço de terra dado a ele por um simpatizante local como plataforma, ele tentou expulsar os romani e demolir suas casas. Os moradores responderam jogando pedras e atacando seu Hummer com martelos. Numa declaração divulgada logo depois do incidente, Marian escreveu: “Só tínhamos uma opção: lidar com a situação de modo radical ao estilo de Milan Juhász [um policial fora de serviço do oeste da Eslováquia que matou e feriu cinco homens romani no verão passado, afirmando que tinha que "restaurar a ordem"]. Tínhamos quatro armas e cerca de 250 cartuchos de munição, mas achamos melhor dar uma última chance à polícia”.
Enquanto a crise na Europa piora e a Eslováquia considera tomar medidas de austeridade, políticos moderados de esquerda e o eslovaco comum parecem ser coniventes, mesmo que por acidente, com a transformação da minoria mais precária do país em bode expiatório. De acordo com estimativas recentes, há cerca de 440 mil romani na Eslováquia, representando 8% da população — uma das maiores concentrações na Europa. De acordo com monitoramentos e relatórios fornecidos pelo Centro Europeu de Direitos Romani (o CEDR), violência ligada ao racismo, despejos, ameaças e formas mais sutis de discriminação e preconceito atingiram um aumento nos últimos dois anos na Eslováquia. O CEDR considera a situação no país uma das piores da Europa. Nos últimos dois anos, 11 prefeituras eslovacas construíram muros para separar os moradores dos guetos romani de seus vizinhos brancos. Na véspera de ano novo de 2012, o presidente da pequena vila Zlaté Moravce (que, aparentemente, estava bêbado) fez um discurso na praça da cidade para mais de mil residentes no qual chamou os membros da “raça branca” para lutar contra “parasitas desempregados”, o que levou skinheads a perseguir adolescentes romani em bares de toda a cidade.
Mas o problema não são apenas os neonazistas, mas os preconceitos profundamente enraizados dos eslovacos brancos. Em dezembro, o corpo decapitado de um romani — degolado pelo açougueiro da cidade — foi encontrado num esgoto numa vila próxima. Abril passado, na vila checa de Chotěbuz, um homem usou arco e flecha para matar um romani que procurava por sucata. O atirador teria gritado: “Seus putos negros! Vou matar vocês!”. Só no ano passado, o jornal Slovak Spector cobriu pelo menos quatro casos de violência de motivação racial contra estrangeiros negros por neonazistas na Eslováquia, incluindo um incidente com um jogador de basquete norte-americano que havia assinado um contrato com um time eslovaco.
Os romani são um grupo étnico heterogêneo que, segundo os historiadores, migraram da Índia por volta do século IX para onde hoje é o Iraque, acabando nos Bálcãs e no Leste Europeu no século XIV. Eles sempre foram perseguidos. De acordo com o livro Enterrem-me em Pé de Isabel Fonseca, leis do século XV na Europa permitiam a execução de ciganos sem qualquer prova do crime. Na Valáquia e Moldávia medievais, os romani eram vendidos como escravos. Um escravo romani poderia ser trocado por um porco. Até os séculos XVII e XVIII, aristocratas promoviam “caçadas humanas” e incendiavam florestas para tirar os romani de seus esconderijos e matá-los. Hoje, há aproximadamente 13 milhões de romani no mundo, a grande maioria na Europa.
Depois do colapso do comunismo e sua separação da República Checa em 1993, a Eslováquia democrática deu direitos de minoria aos cidadãos romani, o quê, na prática, só ampliou a marginalização deles pelos eslovacos brancos e a maioria húngara. Num discurso feito em fevereiro, o primeiro-ministro da Eslováquia, Robert Fico, acusou os romani de tentar chantagear o estado eslovaco. “Não estabelecemos nosso estado independente para minorias, apesar de as representarmos, mas principalmente para a nação formadora do estado eslovaco”, disse ele, antes de reclamar da “estranha tendência de representar a posição das minorias”. A constelação política bizarra do antigo bloco do Leste é tal que o primeiro-ministro Fico, um político pragmático social-democrata, também é conhecido por zombar dos observadores dos direitos humanos e abusar da retórica nacionalista.
Em 2005, uma iniciativa patrocinada pela União Europeia, a Comissão Europeia e o Banco Mundial, entre outras organizações, tinha como objetivo fazer daquela a década da inclusão dos romani na Eslováquia e mais 11 outros países. O Fundo Social Europeu comprometeu um bilhão de euros para ajudar os romani da Eslováquia a alcançar parâmetros pré-determinados de emprego, educação e inclusão social. Hoje, há pouco para se mostrar desses fundos gastos no país. Um programa recente de desenvolvimento da ONU pintou um retrato sombrio: dos 43% dos contratos e fundos designados como relevantes para os romani marginalizados nas cidades da Eslováquia, só 18% realmente alcançaram as comunidades romani. Em minhas entrevistas com os romani, percebi uma percepção geral de que as prefeituras estão financiando seus projetos de desenvolvimento com os fundos que deveriam ir para as comunidades romani.
Por outro lado, há uma teoria persistente entre os eslovacos brancos de que os arquitetos da União Europeia canalizaram o dinheiro para a Eslováquia para transformar o país num gigantesco gueto, evitando assim que os romani migrassem para países como Grã Bretanha e França.
As duas percepções podem não ser de todo implausíveis. Uma fonte que participou das reuniões de alto nível da Comissão Europeia e do Banco Mundial (e que pediu para permanecer anônima) me disse que teve a sensação de que a razão subjacente dos programas sociais era cortar a imigração romani do Leste Europeu para a Europa Ocidental. Há também informações de que a Comissão Europeia ameaçou anular o programa de liberação de vistos para os Bálcãs — o que permite que os residentes dos países da região se movam livremente entre suas fronteiras e as da União Europeia — se eles não fizessem algo para estabilizar sua população romani. A Europa Ocidental não quer os romani, e a Eslováquia também não.
Alguns dias antes do comício neonazi, visitei o gueto romani. Passei por árvores esqueléticas, campos enegrecidos, monumentos da Segunda Guerra Mundial e crucifixos ensanguentados em estradas de terra no meio do nada até Košice, uma deprimente cidade industrial no leste da Eslováquia, que pareceu ter mudado muito pouco desde o colapso do comunismo. No começo do ano, Košice recebeu da União Europeia o prêmio de “Capital Europeia da Cultura 2013”, juntamente com Marselha, na França. Isso me pareceu uma escolha bem estranha. As ruas de paralelepípedo do centro da cidade se esvaziavam lá pelas dez da noite, dando uma vaga sensação de Stasi. A seleção pareceu convenientemente programada para atiçar o entusiasmo pela União Europeia num país prestes a encarar cortes de austeridade e uma taxa de 33% de desemprego entre os jovens.
Há pelo menos 14 assentamentos romani informais espalhados por Košice, em adição aos enormes projetos de habitação social como o Luník IX, um bloco de celas para milhares de romani que se tornou tipo uma exibição do Epcot da pobreza devastadora. No final de fevereiro, centenas de ativistas brancos eslovacos — sem filiação com os neonazistas — marcharam pelas ruas de Košice. Os organizadores disseram à mídia que “a criminalidade cigana tem destruído muitas vidas”.
Na periferia de Košice, sob o horizonte distópico do bloco Oriental de fábricas de ferro e torres expelindo fumaça, chegamos à exuberante vila de Vel"ká Ida. Em agosto, o prefeito de centro-direita do vilarejo ergueu um muro de concreto de 1,80 m na frente do assentamento romani (supostamente para impedir que as crianças romani fossem atropeladas na estrada). Por volta da mesma época, o prefeito cortou o acesso à água da comunidade de 800 pessoas para apenas duas horas por dia, citando uso excessivo.
Em Vel"ká Ida, conheci Carlo, o líder informal do assentamento romani. Atrás do muro que separa a comunidade da estrada, vi casas tortas, cachorros procurando comida em enormes contêineres de lixo e o ar se cheio de fumaça do céu industrial. A esposa de Carlos, uma mulher de uns 50 anos, me levou pelo meio da multidão até seu barraco.
Carlo, um homem baixinho e troncudo de meia-idade, me recebeu em sua cama, que ficava na cozinha. Dos 800 romani vivendo no assentamento, ele era um dos poucos com emprego fixo e mostrou com orgulho sua identidade da US Steel, onde ele fazia trabalhos manuais por 350 euros por mês. “A Eslováquia é o pior país para os romani. O governo é um bando de racistas”, ele disse. Quando perguntei sobre o novo muro ele deu de ombros. “Eu sei que é racismo, eu sei que é segregação. Mas temos problemas maiores para lidar no momento, como a água e o desemprego.”
Um cara de uns 20 anos, que também estava na cozinha, discordou de Carlo. “Se o prefeito queria mesmo proteger as crianças com o muro, por que ele o construiu tão alto? Foi para nos tornar invisíveis.” Carlo balançou a cabeça e contou que era comum os brancos locais, quando bêbados, irem até o assentamento para perturbá-los e disparar tiros para cima. “Olha, você pode ver a pobreza na gente”, Carlo disse. “Agora, com a extrema-direita e sua retórica contra os romani, o que eles querem? O que eles querem tirar da gente? Não temos nada.”
Sob o comunismo, os romani não tinham direitos oficiais de minoria (o conceito de minoria ia contra a unidade inflexível exigida para manter o vasto sistema soviético). No entanto, havia moradia garantida no centro das cidades e muitos empregos na indústria; a integração era forçada e a discriminação era punida. As autoridades relocaram os romani por toda a Checoslováquia como fosse preciso, tentando moldar o grupo étnico como uma força de trabalho maleável.
Nos últimos 20 anos, por meio de um processo que pode ser visto como uma gentrificação coordenada, os romani foram empurrados para fora dos centros das cidades eslovacas até assentamentos segregados nos subúrbios. O número de assentamentos e guetos romani informais cresceu de 278 em 1988 para 620 no ano 2000. De acordo com relatórios do programa de desenvolvimento da ONU, o desemprego entre os romani paira agora em torno dos 70% — comparado com 33% entre os não romani. Quase todos os romani que entrevistei estavam desempregados. Os eslovacos brancos com quem falei culparam a pouca disposição dos romani para o trabalho, enquanto grupos de direitos humanos acusaram a discriminação e o preconceito generalizados.
Dois dias depois de meu encontro com Carlo, fui até a prefeitura, um castelo do século XVII do outro lado da rua de um assentamento romani, falar com o prefeito de Vel"ka Ida, Július Beluscsák. Ele de cara me pareceu um homem vaidoso e pedante, com seu aperto de mão mole e suas botas de bico fino de couro de cobra. Fiquei envergonhado de ter entrado em seu gabinete impecavelmente limpo com meus sapatos sujos de lama do assentamento romani. O prefeito, ex-médico e candidato da coalizão dos partidos de centro-direita e centro-esquerda da Eslováquia, desfiou as estatísticas relevantes: havia 1.300 romani em sua cidade, 75 deles empregados, “e algo em torno de 200 sem futuro”. Noventa por cento dos romani, segundo ele, não sabem o básico de higiene. Quando perguntei sobre como era administrar um distrito com esse tipo de problema, ele suspirou e disse: “Invejo os prefeitos que não têm romani em suas cidades. O assentamento romani aqui em Vel"ká Ida é, provavelmente, o pior de toda a Eslováquia. As mulheres têm filhos dos 13 aos 33 anos. Temos casos de mulheres de 33 anos com 11 filhos. Eles têm muitos filhos para conseguir benefícios sociais. Eles não têm obrigações ou deveres. As crianças não são vacinadas”.
Um dos aspectos do preconceito contra os romani está centrado nas noções de higiene. Se no Brasil a palavra cigano não carrega uma conotação explicitamente negativa, a palavra eslovaca Cigáni pode ser traduzida grosseiramente como “cigano sujo”. Em 2011, defensores da etnia eslovaca começaram um movimento chamado Zobudme sa (“Vamos Acordar”), coletando assinaturas dos prefeitos de 400 cidades numa tentativa de coordenar demolições de assentamentos romani. O movimento tentava usar leis ambientais para reclassificar assentamentos informais como lixões, despejando depois seus moradores alegando lixo espalhado e outras condições não higiênicas. Mas os prefeitos por trás do movimento não propunham a integração dos romani em comunidades brancas ou a melhora das moradias sociais. Eles só queriam os romani fora de vista e longe do pensamento. Em outubro, o prefeito de Košice despejou 156 pessoas de um assentamento e deu a elas passagens de ônibus para fora da cidade. O prefeito do vilarejo para onde os romani foram mandados — outro participante do Vamos Acordar — por sua vez, deu a eles passagens de volta para Košice. De acordo com relatórios recentes do CEDR, os romani despejados agora estão acampando nas florestas da cidade.
Exacerbando ainda mais as condições que dificultam que os romani consigam emprego, vacinas e moradias decentes — tratando-os como indesejáveis — até onde as cidades contribuem para as condições que os romani são acusados de criar? As explicações do prefeito, assim como a ideologia do Vamos Acordar, pareciam mais com um ardil. De acordo com ele, os romani são pouco higiênicos porque são pobres e são pobres porque são pouco higiênicos. A lógica parece simplesmente “vamos nos livrar deles” e a história mostra aonde esse pensamento leva no final.
Quando perguntei ao prefeito como a situação dos romani na cidade poderia melhorar, ele disse: “É preciso lidar com eles de maneira ditatorial”. Tive que pressioná-lo para que ele me dissesse exatamente o que isso significava: “Ditatorial como sob o comunismo. Naquela época, os empregos eram obrigatórios. Se a criança não ia à escola, a polícia ia até a casa dela e espancava os pais”.
O prefeito então saiu abruptamente do gabinete e voltou com uma cesta de presentes da cidade e uma flâmula de futebol. A cesta continha uma toalha e um broche, cada um adornado com o brasão de Vel"ká Ida — um castelo flanqueado por dois lanceiros. “Vel"ká Ida é muito famosa”, ele se gabou. “Costumava haver um castelo cigano por aqui no século XV. Quando os checos atacaram, esses lanceiros ciganos ajudaram a defender a cidade."
“Um castelo de verdade? Os romani ajudaram a defendê-lo?”, eu disse, completamente confuso.
“Não”, respondeu o prefeito, coçando o queixo. “Isso é só um mito.”
Nas legislações eslovacas recentes e nos comentários feitos pelos oficiais eleitos, uma palavra tem aparecido com uma frequência perturbadora: inadaptáveis. Há a percepção de que existem dois tipos de romani: aqueles que podem se integrar à sociedade branca e aqueles que escolheram viver em assentamentos sujos e segregados.
Em 2001, o primeiro-ministro Fico disse: “A grande maioria dos romani só quer ficar na cama o dia todo e viver de benefícios sociais e familiares. Essas pessoas descobriram que, por causa dos benefícios familiares, é vantajoso ter filhos”. Mais chocante ainda, a esterilização forçada e coagida de mulheres romani ocorria nos hospitais eslovacos até 2004, quando ações legais conseguiram que o consentimento nesses casos fosse obrigatório. Testemunhos compilados pelo Centro de Direitos Civis e Humanos em 2003 mostraram um padrão flagrante de abuso perpetrado pelos médicos eslovacos nos hospitais. Eles teriam dito que mulheres romani estavam tendo muitos filhos — às vezes com problemas mentais — para receber mais benefícios de apoio às crianças. Os testemunhos são uma coleção de horrores: uma tentativa de estupro de uma mulher romani por um motorista de ambulância quando ela estava em trabalho de parto, mulheres que foram estupradas por seus ginecologistas, mulheres que disseram não ter recebido analgésicos durante o parto e, num caso particularmente horrível, uma mulher que foi forçada a parir no chão do hospital com o médico gritando: “Você é uma porca, então deve parir como uma porca!”.
Em minhas entrevistas e interações com eslovacos brancos, muitos viam os romani como os reis do bem-estar social, determinados a abusar dos programas governamentais. Em abril passado, Peter Pollak se tornou o primeiro romani eleito para o parlamento eslovaco. Como Plenipotenciário das Comunidades Romani, ele também trabalha aconselhando o governo em assuntos romani. Mesmo com alguns vislumbres de esperança, como a emenda antidiscriminação que entrou em vigor em abril, o entusiasmo com Pollak tem caído com a percepção de que ele está sendo usado pelo primeiro-ministro para forçar uma série de reformas paternalistas chamadas “Caminho Certo”, que visam atender crianças de “cidadãos socialmente inadaptáveis”. As leis, que na maioria ainda precisam ser implementadas, farão com que registros criminais e a frequência escolar das crianças afetem os benefícios sociais recebidos pelas famílias romani. De sua parte, o primeiro-ministro Fico afirmou, no começo do ano, que a melhor esperança para os romani é separar as crianças de suas famílias para colocá-las em internatos. “Alguém precisa mostrar a essas crianças que elas podem viver de maneira diferente”, disse ele.
Uma hora ao norte de Košice, nos subúrbios da cidade de Prešov, visitamos outro gueto romani — o Old Brick-Kiln, um enorme complexo de prédios populares que parece saído de um sonho erótico de Robert Moses. Em 2010, a cidade construiu um muro e um portão de ferro na colina atrás do complexo, fechando o caminho mais fácil e seguro até a cidade. Chaves foram entregues para os vizinhos não romani para que eles pudessem acessar seus jardins, mas não para os residentes romani. Os 15 minutos de caminhada das crianças do complexo até a escola se tornaram 45 minutos de caminhada ao lado de uma rodovia. E claro, a prefeitura não forneceu ônibus escolares.
As escolas eslovacas ainda têm salas de aula segregadas para crianças brancas e romani. Muitas crianças romani são diagnosticadas com deficiências no aprendizado e, de acordo com relatórios do CEDR, elas formam 60% das escolas de educação especial. Apesar de um veredito histórico de 2012 num tribunal eslovaco ter acabado com a separação, o que foi muito comemorado por organizações de direitos humanos, a segregação ainda continua. Alguns pais romani me disseram que a única diferença é que agora estudantes romani e brancos almoçam juntos. ONGs romani e organizações de mídia relataram que eslovacos brancos estão se mudando dos vilarejos para as cidades, só para evitar que seus filhos compartilhem a mesma aula com crianças romani, o que lembra uma “fuga branca” (quando os brancos norte-americanos começaram uma migração em massa dos centros urbanos racialmente mistos para regiões suburbanas mais racialmente homogêneas no meio do século XX), só que reversa.
No Old Brick-Kiln, fomos guiados até o apartamento do líder não oficial do complexo, Milan Daňo. Milan, um homem atarracado de uns 50 anos, coberto de tatuagens do pescoço aos tornozelos, trabalhava como coordenador para uma empresa comunitária romani sem fins lucrativos até ser dispensado em novembro. Dos dois mil residentes que vivem no Old Brick-Kiln, ele era um dos poucos com emprego fixo. Milan disse que sua dispensa estava ligada a uma declaração dada por ele aos jornalistas no verão: “Primeiro eles derrubaram o Muro de Berlim, agora construíram o muro dos romani!”. Ele também assinou uma petição contra a barreira. “Ouvi dizer que o prefeito não queria mais me ver”, ele disse, parecendo abatido.
Nos anos 1990, a maioria dos romani de Prešov ainda vivia em duas ruas do centro da cidade. Seus apartamentos foram considerados inabitáveis, eles foram despejados e o Old Brick-Kiln foi oferecido como alternativa. “Quando eles estavam construindo este lugar, disseram-nos que isso seria um quartel militar, para que não tivéssemos medo de para onde eles iam nos realocar.”
Milan e todos no Old Brick-Kiln pagam aluguel e as contas do complexo. Então, fiquei imaginando: por que essas pessoas não conseguiram outras acomodações depois de serem despejadas do centro da cidade? Tanto o tradutor quanto Milan balançaram a cabeça sinistramente, indicando que eu simplesmente não entendia. “Não é possível — os não romani da cidade nunca alugariam nada pra gente.”
As contas pareciam ainda não estar fechando. Como dois mil romani desempregados conseguiam pagar 300 euros cada, por mês, por seus apartamentos? “Algumas pessoas usam as bolsas dos filhos para pagar o aluguel, outros usam outros benefícios sociais ou têm empregos informais. As pessoas aqui estão até tomando empréstimos”, disse Milan. Ele explicou que tem havido alguns “esquemas de ativação” — programas de estímulo ao emprego financiados pela União Europeia das prefeituras da Eslováquia — mas que isso são trabalhos temporários varrendo as ruas, limpando bueiros ou tirando a neve, onde só 15 ou 20 pessoas são aceitas de cada vez e que, às vezes, o trabalho sequer é remunerado.
A esposa de Milan, Zlata, uma não romani, mas também desempregada, disse: “Todo o povo não romani nos critica porque "não queremos trabalhar". O que acontece é que ser romani impede você de conseguir um emprego. Se eu não consigo um emprego, como posso esperar que ele consiga um com toda essa discriminação?”.
Milan e Zlata percebem esses esquemas de ativação menos como uma maneira de fornecer empregos sustentáveis e mais como um jeito módico de fornecer uma carga de trabalho habitual para as comunidades “preguiçosas” romani.
A República Checa foi o primeiro país na Europa do século XX a iniciar uma “solução” para os romani. A Lei de Migração dos Ciganos de 1927 exigia que todos fossem registrados e classificados pelas autoridades. Áustria e Weimar, Alemanha, seguiram o exemplo com seu Escritório Central da Luta Contra os Ciganos. Eles foram expulsos dos banhos públicos, forçados a usar identidades e tiveram seus direitos civis impedidos. A legislação se intensificou com as Leis de Nuremberg da Alemanha Nazista, a Lei de Cidadania do Reich e a versão cigana da Noite dos Cristais, a chamada Semana da Limpeza Cigana. A “solução final para a questão cigana” foi mencionada pela primeira vez por Himmler em 1938.
A maioria dos historiadores estima que entre 500 mil e 1,5 milhões de romani morreram durante a Era Nazista. Na contagem e memorialização do pós-guerra, os romani foram largamente excluídos e esquecidos. Eles não estavam presentes no acerto de contas dos tribunais de Nuremberg e não receberam nenhuma reparação. A visão geral era que os romani foram assassinados pelos nazistas e pelos países do Eixo não por questões raciais, mas por seu persistente comportamento associal e criminoso — as mesmas razões dadas para a perseguição deles hoje. O holocausto romani não recebeu um nome apropriado até os anos 1990, quando foi batizado de Porajmos — o “Devorar”.
Até 1939, ciganos homens adultos podiam ser mandados para campos de trabalhos forçados no Protetorado Checo. Em 1942, em Praga, o comandante da SS, Horst Böhme, assinou uma ordem de “lutar contra a praga cigana”. Pelo menos 1.039 romani tiveram suas propriedades confiscadas e foram deportados para Lety, um antigo campo disciplinar a duas horas de Praga, operado não pela SS, mas pelos checos. Hoje, uma fazenda de criação industrial de porcos fica no mesmo local do antigo campo.
Conheci Markus Pape num pub numa noite fria de Praga. Ele é o jornalista investigativo que escreveu A nikdo vám nebude věřit dokument o koncentračním táborě Lety u Písku (E Ninguém Vai Acreditar em Você: Um Documento sobre o Campo de Concentração de Lety). “O título”, ele me disse, “veio do que foi dito aos sobreviventes romani quando eles saíram de Lety e tentaram contar sua história. As pessoas diziam: "Ninguém vai acreditar em você"”. Um emigrante alemão despenteado na República Checa que fuma um cigarro atrás do outro, Markus tem o comportamento atormentado que é tão frequente nos jornalistas investigativos de meia-idade.
O livro de Markus mergulha em arquivos e testemunhos em primeira pessoa dos sobreviventes romani. É lamentável que, quando falamos da Era Nazista, lidemos com as pessoas como estatísticas — quase da mesma maneira como os nazistas reduziram humanos a números. No amplo esquema de extermínio na Europa, o campo de Lety era relativamente pequeno. Trezentas e vinte seis pessoas morreram em Lety, 241 delas crianças. Os historiadores checos que conheceram Lety o descreveram como relativamente benigno, similar aos campos de internamento dos japoneses nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. A visão deles é que as crianças que morreram ali sofreram de um infeliz surto de tifo no inverno de Stalingrado em 1943.
O livro de Markus é o primeiro a sugerir que um crime grave foi cometido. Em sua pesquisa, ele descobriu que mortes ocorreram antes do surto de tifo em 1943. Ele afirma que Lety deveria ser reclassificado como campo de concentração. Isso causou um alvoroço entre os historiadores e o governo checo, e o fato de Markus ser alemão não ajudou muito. “Isso não se encaixa na autopercepção checa como vítimas da Segunda Guerra. Eles se veem assim: "Ocasionalmente, nós desobedecíamos as leis, mas não éramos como os alemães ou qualquer outra nação imperialista"”, disse ele. Mesmo se Lety fosse somente usado como campo de internação, mais de 500 romani foram transportados de lá para as câmaras de gás de Auschwitz.
O campo de Lety foi demolido depois do surto de tifo e nenhum dos checos responsáveis pelos crimes ali cometidos foi condenado. O campo permaneceu esquecido até o começo dos anos 1990, quando um empresário e genealogista amador norte-americano, Paul Polansky, redescobriu a história nos arquivos checos e informou o Congresso americano. Em resposta, Václav Havel, o primeiro presidente eleito democraticamente na República Checa, patrocinou um pequeno memorial que foi erguido perto da fazenda de porcos em 1995, mas não solicitou qualquer contribuição romani durante a fase do projeto. “Você consegue imaginar alguém construindo um memorial do Holocausto sem consultar nenhum judeu?”, Markus me perguntou retoricamente. O primeiro-ministro atual da República Checa visitou o memorial no verão passado, mas insistiu que não tinha como despejar os donos da fazenda de porcos.
Markus, que agora trabalha parte do tempo como monitor de direitos humanos, mencionou que tinha assistido ao filme norte-americano Mississippi em Chamas na noite anterior. “Fiquei chocado ao ver como muitas coisas no filme eram as mesmas coisas que aconteciam aqui com os romani”, ele disse, descrevendo um ataque investigado por ele a um prédio de apartamentos romani, cometido por neonazistas, que deixou uma garota queimada de forma permanente. “Quando falo com meus amigos checos sobre os romani, eles acham que é um problema que nunca será resolvido. Talvez seja algo como a questão Israel/Palestina. Para Israel, não há solução.”
Na manhã seguinte, eu e Markus dirigimos até o vilarejo funesto e vazio de Lety. “O campo foi construído do outro lado de uma colina para que ninguém pudesse ver o que estava acontecendo”, ele explicou. Viramos numa estrada rural de mão dupla que logo mudou de asfalto para terra. Na tarde cinzenta, a fazenda de porcos, com sua cerca de arame farpado enferrujado, prédios cinzas enfileirados e uma fumaça malcheirosa subindo das chaminés, parecia uma foto de campo de concentração de um livro escolar. Paramos no topo da colina, examinando uma placa que contava o valor histórico do antigo local. “Os sobreviventes disseram que foram torturados aqui”, disse Markus. “Um sobrevivente que esteve em Auschwitz e Lety disse que Lety foi pior porque foram os checos, seu próprio povo, fazendo essas coisas com eles. Auschwitz era ruim, mas você sempre podia ver a câmara de gás chegando. Em Lety, eles nunca sabiam o que ia acontecer no dia seguinte.”
O memorial de Havel, situado num bosque coberto de neve, parece um daqueles anfiteatros a céu aberto de igrejas batistas que pode ser encontrado nos subúrbios de Houston. “O problema é que os visitantes vêm até aqui, veem a fazenda de porcos da estrada e pensam: "Esse é o memorial? Parece um campo de concentração"”, disse Markus. Do outro lado do lago, a fazenda continua a expelir sua fumaça cinza. Markus apontou para a lagoa e disse: “Os sobreviventes disseram que as crianças foram afogadas ali”.
De volta ao vilarejo, visitamos um centro de informações sobre o campo Lety. A sala pequena e sem aquecimento cheirava a bituca de cigarro molhada e estranhos espelhos tortos estavam pendurados nas paredes. Na saída, depois de olhar os cartazes históricos, fomos verificar o livro de visitas. Alguém tinha rabiscado “Gás nos ciganos!” numa página inteira.
No caminho de volta a Praga, eu e Markus conversamos sobre o futuro. “Hoje, qualquer governo que apoiar os romani vai perder a próxima eleição”, ele disse. “A democracia deveria proteger as minorias. Sem essa proteção, elas serão eliminadas pelo que a maioria decidir. Acho que as pessoas em países pós-comunistas estão tendo dificuldades para se ajustar a isso. Depois de 1989, perdemos uma grande parte de nossa identidade de ser parte do bloco internacional comunista. E onde estamos agora? Do que podemos nos orgulhar? Tivemos que reavivar nossa abordagem nacionalista para preencher o vazio. E os romani não se encaixam nessa abordagem.”
Este artigo foi escrito em parceria com o Investigative Fund do Nation Institute.
Fonte:
Vice
URL Fonte: https://arenapolisnews.com.br/noticia/4905/visualizar/
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