"É uma coragem inacreditável", diz o brasileiro que vê de perto os jovens da linha de frente das manifestações de rua nos arredores da praça Tahrir, no centro do Cairo. "O Exército está usando um gás muito forte, chamado "gás cs". Quando estoura na nossa cara, dói o peito, dói o olho. Explodem três ou quatro bombas e caem 50 pessoas no chão."
Aldo Cordeiro Sauda, de 24 anos, se formou em Relações Internacionais em São Paulo. Após a queda do ditador Hosni Mubarak, em 11 fevereiro deste ano, decidiu ir ao Egito acompanhar o que acontece no país e continuar suas pesquisas na área. Chegou lá em agosto, e desde então foi toda semana a alguma manifestação.
Em entrevista ao G1 por Skype, do apartamento em que está no Cairo, ele falou sobre como é estar no meio das manifestações - que continuam, agora contrárias à demora da junta militar, que substituiu Mubarak, em realizar mudanças democráticas. Desde o último sábado, 36 pessoas morreram. Após a repressão deste final de semana, o gabinete provisório de ministros civis pediu demissão.
Nesta terça (22), a junta concordou em formar um "governo de salvação nacional" e realizar eleições presidenciais antes de julho de 2012, cedendo assim às pressões populares para apressar a transição de poder no país. Uma eleição parlamentar para compor o grupo que elaborará a nova Constituição está confirmada para o dia 28 deste mês.
Leia os principais trechos do relato:
Chegada
"Eu morava na rua em que estão rolando os confrontos. Meu primeiro hotel está debaixo de tiroteio há três dias. Agora me mudei pra um bairro tranquilo do Cairo. Os embates estão rolando na porta do Ministério do Interior.
Eu cheguei no começo de agosto, logo depois que a segunda ocupação da [praça] Tahrir tinha sido encerrada. Logo no começo do Ramadã. Fui em todas as manifestações. Não tem manifestação todo dia, mas praticamente toda sexta-feira."
Greves
"Eu sempre me deparei com uma greve. Uma das historias que não é contada é que quem ajudou muito a derrubar o governo [de Hosni Mubarak] foi o movimento operário - principalmente o de base tecelã de uma cidade chamada Mahalla.
Desde 2006 existe uma ascensão do movimento operário egípcio. O movimento 6 de abril é, na verdade, de solidariedade do movimento operário. A mesma coisa acontece com outros movimentos. Nos últimos dias [antes da queda de Mubarak] teve uma paralisação geral, e o regime não aguentou.
Esse ascenso começa em 2006, e a cada ano que passa tem o dobro de greves. As greves não param. Teve há umas semanas uma grande greve dos transportes, depois dos professores. Nesse sentido, o que mais tem aqui é greve. Uma das reivindicações deles é o salário mínimo. Aqui não tem. E a situação econômica está muito ruim."
Movimentos políticos
"O movimento tem tido dois eixos. As greves, mais organizadas, e o povo na rua, quase sem nenhuma organização. Todos os movimentos políticos aqui são muito pequenos. A única organização politica de verdade é a Irmandade Muçulmana, que está louca pra chegar ao poder. À direita deles, tem os salafistas, que é um movimento ultraislâmico radical.
Nos primeiros dias da revolução, a Irmandade não participou, mas sua juventude, sim. Existe um conflito entre a juventude da Irmandade, mais liberal, e a própria. Quando a Irmandade viu que não dava pra ficar longe, ela entrou e ajudou a empurrar o movimento.
Está tendo uma revolução nas ruas, mas na pratica houve um golpe de Estado. O general [Hussein] Tantaui [chefe da junta militar no poder atualmente] tomou o poder. O povo quer o fim do regime Mubarak. Porque a substituição de Mubarak pelo Tantaui não implicou o fim do regime. Foram feitas diversas concessões pela junta militar, e o povo hoje tem clareza disso.
As pessoas gostam do Exército no Egito, ou gostavam. E ele posou como grande salvador da pátria quando derrubou Mubarak, só que o povo vê que não é isso.
Uma questão muito seria é a dos tribunais militares para civis. Isso está sendo usado pra perseguir os revolucionários. Não está havendo mudanças econômicas. Não tem liberdade e justiça social. Nenhuma das reivindicações da revolução está sendo atendida."
Eleições
"Toda sexta-feira há tentativa de mobilização de massa. Eles não estavam conseguindo colocar muita gente na rua.
Nessas eleições [parlamentares] que a junta [militar] está organizando, dizem que é a primeira eleição livre, mas não é exatamente isso, pois os remanescentes de Mubarak que estão a conduzindo. Aqui no Egito, os remanescentes do antigo regime estão em outros partidos, eles vão disputar as eleições e têm muito dinheiro. Isso está deixando muita gente brava."
O último confronto
A irmandade organizou na última sexta um ato contra a carta que a junta estabeleceu com regras base para a nova Constituição. Na sexta, a maioria [na manifestação] era de salafistas e a Irmandade. A turma que convoca manifestação toda sexta-feira também veio. A irmandade tinha demandas específicas. O que o setor de esquerda exige é o fim da ditadura militar. Essa não é a exigência da Irmandade islâmica. Dos liberais sim, mas eles são minoria.
O que aconteceu? Chegou a noite, o pessoal da irmandade foi embora e ficaram uns 50 moleques pra dormir na praça [Tahrir] sexta-feira, uns inclusive meus amigos. Chegou o Exército às 4h da manhã, espancou todo mundo e tirou o pessoal da praça. Eles avisaram os amigos, que avisaram os amigos. Até ligaram pra mim 10h dizendo "vem pra praça que tá tendo confronto". Aí o pessoal veio, a praça lotou.
Sábado começou com 50 pessoas, virou 2 mil às 11h, 15 mil às 16h. E o confronto era com a polícia. Só que a polícia apanhou muito e perdeu boa parte da estrutura repressiva. Quem tem contido as massas é a polícia do Exército."
No meio da briga
Machuquei meu joelho sábado no empurra-empurra. Porque tem muito. O Exército entrou para expulsar o povo, só que eles retomaram a praça e virou uma batalha.
O Exército tá usando um gás que é muito forte, chamado "gás cs". Quando estoura na nossa cara, dói o peito, dói o olho. Estive perto de vários jornalistas e todo mundo fala não dá pra entender que produto químico estão jogando. Explode três ou quatro bombas e caem 50 pessoas no chão. Não dá pra descrever a potência. Se você está perto e ele explode, você não consegue enxergar. Dá dor de cabeça, náusea, dor nas juntas.
Tem três hospitais no meio da praça. Sempre que eu vou levo medicamento, porque eles precisam. Quem fica na frente cai e sempre tem uma pessoa que os leva pro hospital.
Morreram umas 20 pessoas só de asfixia. Eles estão atirando e mirando nos olhos. Tenho um amigo que perdeu a visão, um fotógrafo. É muito gás. Para você ter uma ideia, o chão da rua Mohammed Mahmud [rua paralela ao Ministério do Interior] está branco. E o Exército recua porque é muita pedra. Quando você olha pro chão, é um mar de pedras. É uma coragem inacreditável.
Quando você entra na praça vê milhares de pessoas com vinagre e coca-cola pra proteger o olho e agora tem camelô vendendo máscara. Eu tô usando uma máscara, paguei uns quatro, cinco reais.
E fica um empurra-empurra. Tem barricadas em volta da praça. O pessoal usa as barricadas pra se proteger e de lá atira os coquetéis molotov. É muito violento na Mohammed Mahmud. É a área mais violenta é a rua paralela do Ministério do Interior, que é quem controla a policia aqui. Se a polícia recuar, o povo vai tomar o ministério do Interior.
Rotina
Eu acordo e vou pra praça. E a vida continua. Então em alguns lugares em volta da praça, você vai achar restaurantes abertos, coisas assim.
Está inverno aqui. Então eu vou com um jeans grosso, dois casacos, uma máscara e com um lenço em volta do pescoço. Todo mundo tem que ter um lenço para colocar vinagre por causa do gás.
Eles distribuem mascara na praça, aquelas de cirurgia. A minha é uma que teoricamente protege um pouco mais, é para quando se usa muita tinta. E eu também estou com um óculos. Todo mundo tem muito medo de ficar cego.
Linha de frente
De vez em quando eu vou pra linha de frente. Na verdade, quem está lá são jovens das torcidas organizadas. Eles fazem os cantos das torcidas. Eles acendem as tochas, soltam fogos de artifícios e vão pra briga com a polícia. São uns 300 moleques que ficam na linha de frente que são os ‘heróis’ da revolução egípcia. Às vezes eu vou lá pra frente ver como está. Uma vez uma colega australiana quis ir também e desmaiou com o gás. Tive que sair correndo com ela. E se você sai correndo da linha de frente vem um monte de gente jogar coisas na sua cara [para aliviar os efeitos do gás] mesmo que você não queira.
Eu fico na praça o dia inteiro. Todos os meus amigos estão na praça. Também é algo social. A gente sai, vai almoçar em volta da praça, volta pra praça. Socialmente é um lugar muito vivo. Acabei de fazer a barba e estou indo pra lá."
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