Até o dia 29 de fevereiro deste ano, quando foi preso, o bicheiro Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira, estava acostumado à gastronomia de luxo. Entre os milhares de gravações captadas pela Polícia Federal na Operação Monte Carlo, há ocasiões em que se ouve Cachoeira tratando de jantares e da degustação de bons vinhos com o senador Demóstenes Torres (“Quero saber a que horas você vem, para... decantar o vinho”, diz Demóstenes). Na prisão, a realidade é outra. As regras do presídio da Papuda, em Brasília, permitem a entrada de poucos alimentos externos. Cachoeira tem de se virar com a comida da cadeia. Por coincidência, trata-se da comida que ele mesmo patrocinou, por meio de lobby para influenciar o resultado de concorrências. Uma das três fornecedoras de marmitas para os mais de 11 mil presos da Papuda é a empresa Cial Comércio e Indústria de Alimentos. De acordo com a investigação da polícia, no ano passado Cachoeira trabalhou para que a Cial ganhasse contratos com o governo de Goiás.
A Cial é uma empresa goiana. Além de servir à Papuda, ela administra dois restaurantes e fornece lanches, coquetéis e outras refeições para servidores do Palácio do Planalto. O contrato com a Presidência da República, firmado em 2008, já lhe rendeu R$ 27 milhões. Nem todo contrato, porém, pode lhe trazer benefícios. Há quase dois meses, a Secretaria de Direito Econômico (SDE) abriu uma investigação sobre o contrato da Cial e outras 16 empresas com o governo do Rio de Janeiro. Responsável por investigar práticas lesivas à concorrência, em agosto de 2009 a SDE recebeu a denúncia de que 17 empresas haviam formado um cartel para s burlar uma concorrência para fornecer marmitas a presídios. A Cial encabeça a lista das denunciadas. Órgão do Ministério da Justiça, a SDE só inicia uma investigação se houver indícios contundentes de condutas desleais. No caso do Rio, a SDE identificou propostas de preços idênticos, falta de competição e elos entre as participantes. A Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro afirma não ter encontrado irregularidades na concorrência. Nos últimos anos, a Cial recebeu cerca de R$ 30 milhões do governo de Sérgio Cabral (PMDB).
Na investigação da PF sobre o esquema de Cachoeira, a Cial aparece como uma empresa defendida pelo bicheiro. Em conversa com um interlocutor identificado apenas por Michel, no dia 9 de agosto do ano passado, Cachoeira afirma que a Cial deveria ser favorecida por uma decisão judicial para fornecer marmitas ao presídio de Aparecida de Goiânia, o maior de Goiás. Cachoeira pretendia afastar do contrato uma concorrente, a Coral. Michel pergunta a Cachoeira se a Cial era do bicheiro. “Não é minha não, rapaz”, diz Cachoeira. “É de amigos. É Cial. A nossa é a Cial.” Sem entender direito o que Cachoeira diz, Michel pergunta se é Cial ou Coral. “Não. É para ser a Cial. A Coral tem de levar ferro”, diz o bicheiro.
Um mês antes desse diálogo, Cachoeira conversara sobre o assunto com o ex-vereador de Goiânia Wladmir Garcez (PSDB). Segundo a PF, Garcez era um de seus principais auxiliares da organização criminosa. Numa gravação, Garcez afirma a Cachoeira que um interlocutor ligara para o então procurador-geral do Estado, Ronald Bicca, para “tirar a Coral do processo”. Garcez e Cachoeira cogitam pedir ajuda ao senador Demóstenes para favorecer a empresa de seus amigos. A Cial não foi beneficiada pela Justiça porque o juiz que analisou o caso entendeu que a Coral tinha o direito de fornecer as marmitas. Meses depois, devido a dificuldades financeiras da concorrente, a Cial conseguiu fornecer parte das marmitas. Mencionado em outras conversas entre Cachoeira e seus comparsas, o procurador Bicca deixou o cargo após a deflagração da Operação Monte Carlo.
A Cial enfrenta contestações sobre a qualidade de seus produtos servidos no Distrito Federal. De acordo com relatórios da Secretaria da Saúde do DF, a Cial serviu alimentos contaminados a pacientes de um hospital público de Brasília. Foi constatado, também, o reaproveitamento de refeições. A Secretaria da Saúde apontou ainda superfaturamento no preço de itens fornecidos. A empresa corre o risco de ser considerada “inidônea” pelo governo do DF. Frederico Valente, proprietário da Cial, nega que sua empresa tenha participado de cartel no Rio de Janeiro. Valente diz não conhecer Cachoeira nem saber por que ele usou o nome da Cial em suas conversas. Valente admite conhecer Garcez, mas diz nunca ter conversado com ele sobre o contrato da prisão de Goiás. Valente afirma, ainda, que a Cial enfrentou problemas pontuais no fornecimento de refeições para um hospital de Brasília, mas que todos foram sanados. Como consumidor das refeições oferecidas pela Cial na Papuda, Cachoeira pode agora avaliar melhor os serviços da empresa que defendeu.
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