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Casamentos forçados causam suicídios no Iraque
Com seu pai sentado perto dela, Jenan Merza, de 16 anos, tentava explicar por que estava na cama se recuperando de um ferimento a bala. "Eu não sabia que a arma estava carregada", disse ela, repousando sob um cobertor vermelho num quarto simples de chão de concreto.
Alguns momentos depois, quando o pai saiu para preparar chá e café, ela chorou baixinho e admitiu o que realmente acontecera, como ela havia atingido a si mesma no abdômen com a pistola Glock de seu irmão – após tentar com um rifle Kalashnikov, arma comprida demais para apontar para si mesmo e puxar o gatilho.
"Tentei me suicidar", explicou ela. "Eu não queria me casar. Fui obrigada a ficar noiva."
Nesta comunidade isolada e tradicional no canto noroeste do Iraque, ao lado de uma cadeia de montanhas na fronteira com a Síria, a reação de Merza ao antigo costume de casamentos arranjados vem se tornando mais comum. Autoridades estão alarmadas pelo que descrevem como uma crescente epidemia de suicídios, especialmente entre jovens do sexo feminino, atormentadas por casamentos precoces com homens a quem elas não amam.
Embora seja difícil obter estatísticas confiáveis sobre qualquer assunto no Iraque, autoridades dizem que, neste ano, houve cerca de 50 suicídios nesta cidade de 350 mil habitantes – pelo menos o dobro da taxa dos Estados Unidos –, frente a 80 no ano passado inteiro. Os métodos mais comuns entre mulheres são autoimolação e armas de fogo.
Entre as muitas explicações dadas, como pobreza e loucura, uma é mais frequente: acesso à internet e à televisão por satélite, algo que só apareceu após o início da guerra. Isso ofereceu às jovens vislumbres de uma vida melhor, livre das tradições que, há muitos séculos, restringem as mulheres a uma vida de obediência e criação de filhos – uma vida desprovida de romance.
"A sociedade era fechada, e agora está aberta ao mundo", explicou Kheri Shingli, membro de um partido político local, além de escritor e jornalista. "Elas sentem que não estão vivendo bem suas vidas, em comparação com o resto do mundo."
No ano passado, a Organização Internacional para Migração realizou um estudo sobre o crescente problema dos suicídios em Sinjar, onde não existem serviços de saúde mental, e concluiu que "a marginalização das mulheres e a visão do papel feminino como periférico contribuíram para os recentes suicídios". Um relatório compilado neste ano por um pesquisador local concluiu: "A maneira de resolver isso é colocar um fim aos casamentos forçados".
Isso provavelmente não acontecerá tão cedo. Ao atribuir culpas pelo aumento de suicídios, muitos locais mencionam a telenovela turca "Forbidden Love" (amor proibido). Um drama romântico da classe alta, o programa é o favorito das mulheres locais – e algumas pessoas afirmam que ele oferece um exemplo irrealista das vidas que estariam disponíveis fora de Sinjar.
Merza disse que assistia ao programa, e reconheceu: "Eu gostaria de ter aquela vida", mas sua angústia parece mais básica. Aos 16 anos, ela quer continuar sendo uma criança.
"Quero ficar com minha mãe e não voltar para o meu marido", afirmou ela. O pai de Merza, Barkat Hussein, entrevistado em particular mais tarde, declarou estar ciente de que o tiro não foi acidental. "Nós a demos ao seu primo menos de 20 dias atrás", explicou ele. "Ela o aceitou. Como qualquer pessoa que se casa, ela deveria estar feliz." Ele garantiu que não a obrigaria a voltar para o marido, que mora na casa ao lado. Mas completou: "Espero que ela volte para ele. O pai dele é meu irmão".
Ele também culpa a novela turca pela infelicidade da filha, e apontou para o cômodo onde sua esposa trabalhava. "Eu me casei com minha prima", disse. "Não estava apaixonado por ela, mas estamos aqui, vivendo juntos. É isso que acontece aqui; casamos com nossos parentes."
Como a família de Merza, a maioria dos habitantes daqui é yazidi; essas pessoas falam o idioma curdo, mas seguem uma religião que combina elementos do Islã e de antigos credos persas. Entre suas crenças existe uma reverência especial por uma figura chamada Melek Taus, a quem os muçulmanos se referem como Satã. Por isso, eles são frequentemente rotulados como adoradores do demônio – o que justificava a histórica opressão da seita pelos muçulmanos extremistas.
Em 2007, Sinjar sofreu o mais mortal ataque terrorista coordenado do período de guerra, quando diversos caminhões repletos de explosivos (e guiados por homens-bomba) foram detonados, matando quase 500 pessoas e destruindo o mesmo número de casas – a maioria delas feita de lama.
A economia da cidade sempre dependeu de tabaco e figos, mas o abandono e a guerra deixaram o setor agrícola dormente – e muitos homens procuram trabalhos temporários nas cidades curdas de Erbil e Sulaimaniya. A proximidade com a Síria significa que surgem refugiados vindos do oeste, e contrabandistas de cigarros e armas para os rebeldes sírios rastreiam seu caminho de volta.
A área é uma terra de ninguém isolada, onde nem o governo central e nem o governo regional curdo parecem exercer muito controle.
Ao chegar, um visitante pode notar uma grande placa azul dizendo, quase zombeteiramente, "Happy Land" (terra feliz, em inglês), o nome de um parque de diversões em ruínas. No início da década de 1970, as cenas de abertura de "O Exorcista" foram filmadas aqui, em meio a antigos santuários Yazidi.
Autoridades locais afirmam que alguns casos julgados como suicídios seriam na verdade assassinatos por honra, onde familiares matam mulheres que cometem adultério ou buscam se casar fora de sua religião ou classe social, e então encobrem o ato alegando um suicídio.
"Isso também acontece", declarou Majia Khalaf, médico que administra um centro de saúde do governo.
Num caso recente, um pai tentou afirmar que sua filha de 19 anos havia se esfaqueado até a morte, mas seus irmãos estavam detidos por suspeita de assassinato.
O pai, Abdella Hassan, disse que havia recentemente casado sua filha com o primo, e que logo pouco tempo depois ela teria começado a "falar coisas sem sentido" e ter alucinações.
Ele a levou a um xeique Yazidi, que disse que o demônio a havia possuído e aconselhou um ritual de exorcismo – que envolvia cobri-la em poeira de um santuário Yazidi. Antes que o ritual pudesse ser realizado, porém, o pai a encontrou morta.
"Eu a vi feliz em seu casamento", explicou ele. "Esse não foi o motivo."
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