Matriculados, presos dependem da justiça para ir à faculdade
Pouco mais de um mês depois da realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em 3 e 4 de novembro deste ano, a população carcerária do País também terá a oportunidade de fazer as provas e pleitear uma vaga na universidade. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou em setembro edital que confirma para 4 e 5 de dezembro a aplicação do Enem nas unidades prisionais que firmarem acordo com o órgão. Um bom desempenho na prova, contudo, não assegura o ingresso no ensino superior. Mesmo matriculados, esses alunos dependem de autorização especial da justiça para poder frequentar as aulas - especialmente os detentos que cumprem pena em regime fechado.
Além da permissão, há a questão logística da operação: conforme a sentença do juiz, pode ser exigido monitoramento eletrônico (como tornozeleiras) ou até mesmo escolta armada. Por isso, ainda que tenha permissão para frequentar a universidade, o aluno pode esbarrar na falta de estrutura do Estado.
É o caso de Eder da Silva Torres, que foi aprovado no Enem e começaria o curso de Direito na Universidade de Caxias do Sul (UCS), no Rio Grande do Sul, em agosto de 2011. Desde o final de 2008, Torres cumpre pena de 23 anos e três meses na Penitenciária Industrial de Caxias do Sul por homicídio e tráfico. Mesmo matriculado e com liberação para participar das aulas devido ao bom comportamento, ele não conseguiu iniciar os estudos no ensino superior.
Na época, a Superintendência dos Serviços Penitenciários do Estado (Susepe) alegou não ter efetivo suficiente para realizar a escolta do detento como determinado pelo judiciário. Mais de um ano depois, Torres segue em regime fechado sem ter cursado nenhuma das disciplinas. Segundo a UCS, a vaga para a qual ele havia sido aprovado foi perdida. Para ingressar outra vez na universidade, ele dependeria de uma nova prova.
A professora de Direito Penal da Universidade de Brasília (UnB) Beatriz Vargas afirma que a escolta é uma atribuição policial. Embora, na teoria, a decisão judicial deva ser acatada e viabilizada, com a efetivação do benefício concedido, na prática os órgãos de segurança podem apresentar justificativas para o não cumprimento da medida. Para Beatriz, é possível que posições ideológicas divergentes dificultem a aceitação dessa decisão, mas a falta de estrutura e de efetivo é o mais comum. "As dificuldades são de ordem estrutural. Na maior parte das vezes, esses benefícios concedidos aos presos não são efetivados devido à deficiência do sistema", considera.
Em 2011, foram 14.118 detentos inscritos no Enem, segundo dados do Inep. Em 2010, o instituto também recebeu mais de 14 mil inscrições, e a prova foi realizada por mais de 10 mil candidatos - 70% de presença.
Decisão inédita no CE
No Ceará, a juíza Luciana Teixeira de Souza, da 2ª Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça (TJ) do Estado concedeu, em fevereiro deste ano, autorização para que Cynthia Corvello, detenta do Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, localizado em Aquiraz, região metropolitana de Fortaleza, frequentasse as aulas do curso de história na Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi a primeira vez que uma decisão desse tipo foi tomada no Estado. Em regime fechado desde 1993, quando foi presa por homicídio qualificado e condenada a 25 anos e 4 meses de reclusão, Cynthia prestou o Enem em 2011 e obteve a vaga por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu).
A decisão, segundo a juíza, foi baseada na Lei de Execução Penal, que prevê a possibilidade de trabalho externo em obras públicas para presos do regime fechado. "Há jurisprudência em que o estudo é equiparado ao trabalho para redução de pena, então foi uma interpretação analógica", explica Luciana. A individualização da pena, prevista na Constituição Federal, também foi levada em conta.
No caso de Cynthia, além de bom comportamento, ela deve ter direito ao semiaberto em 2013. "Era uma situação completamente especial. Não seria justo ela ter todos esses elementos e não poder estudar em universidade pública", explica Luciana. Mesmo assim, a juíza reconhece que é uma decisão de muita responsabilidade. "Afeta a sociedade. Tem que examinar com muita cautela para que não gere prejuízo social", ressalta.
Autorização
A professora de Direito Penal da Universidade de Brasília (UnB) Beatriz Vargas reconhece que o texto da lei não prevê expressamente a concessão desse tipo de autorização. "Não existe a possibilidade de o condenado sair para acompanhar cursos. Essa atividade externa só poderia ser feita por presos do regime semiaberto e aberto", entende. A analogia feita pela juíza, no entanto, é plausível, na visão da professora, observando a conduta da detenta. "Apesar de os dispositivos específicos do regime fechado não fazerem essa exceção, a compatibilização com o espírito da lei permite conceder ao recluso condições para ele se reinserir na vida social", avalia Beatriz.
Luciana informa que tanto a diretora da unidade prisional quanto o promotor foram favoráveis à permissão, uma vez que a detenta nunca havia tentado fugir ou se envolvido em outros crimes, além de ter contribuído com a idealização de uma biblioteca na unidade. "Depois que a gente concedeu a decisão, a Secretaria de Justiça assumiu o compromisso de fazer com que não houvesse nenhum problema. Ao mesmo tempo, mostrei o compromisso que ela (Cynthia) estava assumindo com a Justiça", afirma.
Para concretizar a autorização, a juíza dispôs de uma tornozeleira eletrônica e, nos primeiros dez dias, Cynthia foi à universidade acompanhada por uma agente feminina sem farda, a fim de delimitar a área por onde ela passaria e prever o tempo que ela precisaria para cumprir o trajeto e assistir às aulas. Hoje, cursando o segundo semestre, a detenta vai sozinha para a universidade, monitorada eletronicamente e com o único fim de estudar. "Ela não pode receber visita de familiares. Para ela, a universidade é uma extensão da unidade prisional", explica a juíza. Mensalmente, a instituição deve enviar relatórios sobre o desempenho da aluna e sua participação em sala de aula. Mas Luciana garante que os pareceres têm sido positivos e não há resistência por parte dos demais estudantes.
A juíza, entretanto, ressalta a questão da individualização da pena para que fosse concedida a autorização a Cynthia. "Qualquer benefício previsto na lei depende de análise objetiva e subjetiva", explica. Além disso, mesmo detentos que estejam cumprindo regime semiaberto dependem de autorização para esse tipo de atividade. "Se me perguntarem se todos os presos que passarem em universidade pública vão poder cursar, eu vou dizer que não. Tem que analisar caso a caso", diz.
Beatriz vê na decisão uma chance para incitar o debate sobre o tema no País, uma vez que se trata de uma situação rara, e muitos juízes, na sua opinião, tendem a promover uma interpretação mais literal da lei. "Quando aparece uma decisão que rompe, é interessante que ela seja viabilizada. A lei de atuação pode ser melhorada. O Estado tem que criar condições para que isso seja um direito efetivo", analisa.
A professora afirma que a ausência de uma regra legal expressa sobre determinado tema não inviabiliza a análise de um caso desse tipo, pois a demanda pode ser resolvida por analogia a fim de preencher uma lacuna na lei. "Os movimentos de modificação da legislação geral começam assim. Muitas vezes ela muda o seu texto em função de uma modificação na prática. Às vezes é a própria ousadia do intérprete da lei que pode convencer da importância da mudança", justifica.
Redução na reincidência
A alteração na Lei de Execução Penal (Lei nº. 7.210/84) instituída em 2011 acrescentou o estudo como meio de obter remição de pena - antes, somente o trabalho poderia validar a diminuição do tempo de condenação. A equivalência prevista na legislação é de um dia a menos na prisão a cada 12 horas de estudo ou a cada 3 dias de trabalho.
Um estudo feito pelo professor Elionaldo Fernandes Julião, do programa de pós-graduação em educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), acompanhou mais de 130 mil detentos do Estado do Rio de Janeiro entre 1996 e 2006. O período abrangeu a implantação de políticas de educação, desde a alfabetização, nas unidades prisionais do estado, e cerca de 52 mil participaram de pelo menos alguma atividade. Segundo a pesquisa de Julião, publicada em livro recentemente, o estudo reduz em 39% as chances de retorno ao mundo do crime, e o trabalho, em 48%.
Embora tenham sido observados apenas alunos até o ensino médio, o professor acredita que o ensino superior também contribuiria para essa redução. A experiência brasileira em oferecer essa possibilidade à população carcerária, contudo, é muito incipiente, na visão de Julião. Isso acontece, em parte, porque cerca de 60% de jovens e adultos que estão presos não concluíram nem o ensino fundamental. "É preciso repensar a política educacional que está sendo implantada no sistema prisional. Alguns Estados sequer oferecem escola nas prisões", destaca o professor.
Julião também opina que o Ministério da Justiça deveria criar uma diretriz nacional que fixasse parâmetros para o tratamento penitenciário em diversas frentes, entre elas a educação. "Os presos são cidadãos como qualquer outra pessoa. Ele perde o direito de ir e vir, mas todos os outros direitos têm que ser garantidos. Educação é um direito humano e subjetivo", observa.
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