Governo prepara pacote contra o tráfico internacional de pessoas
Um crime difícil de ser constatado, de ser levado à Justiça e de ter seus responsáveis punidos. O tráfico de pessoas é um crime considerado invisível. O primeiro relatório com as informações sobre ele, do governo federal, revela que, entre 2005 e 2011, foram instaurados no Brasil 157 inquéritos por tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual. Apenas 91 resultaram em processos. Nesse período, 381 pessoas foram indiciadas, mas 158, menos da metade, foram presas. O levantamento é da Secretaria Nacional de Justiça, vinculada ao Ministério da Justiça.
Para tentar combater esse tipo de crime, o governo prepara um pacote ambicioso, com 115 metas, e vai publicar uma portaria na próxima segunda-feira detalhando essas ações. As medidas integram o II Plano de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Hoje, a legislação pune apenas o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Não prevê punição para tráfico para fins de trabalho escravo, servidão, trabalho doméstico, remoção de órgãos, e de crianças para fins de mendicância. Pela proposta, essas modalidades passarão a ser tipificadas, a partir de projetos de lei enviados ao Congresso Nacional.
A portaria dos três ministérios envolvidos com essa questão — Justiça, Direitos Humanos e Secretaria das Mulheres —, com aprovação da Casa Civil, prevê as seguintes medidas: a perda de bens dos envolvidos em tráfico de pessoa, revertendo-os para atendimento às vítimas; sanções administrativas a empresas financiadas com recursos públicos, inclusive as que executam grandes obras governamentais no Brasil, que tenham sido condenadas nesse tipo de processos; a internacionalização do Disque 100 e do Disque 180 (de denúncia contra esse tipo de exploração); a regulamentação do funcionamento de agências de casamento e de recrutamento de pessoas; a instalação de casas-abrigo no exterior para atendimento dessas vítimas; e o monitoramento nas grandes obras do governo de infraestrutura, mineração e energia.
— O estudo mostra que o sistema de Justiça criminal funciona como um funil. Deveria ser um processo distribuído para cada inquérito. Funciona na razão de dois para um. Por isso, vamos intensificar as ações e, além da prevenção, fechar o cerco a quem explora essas pessoas vulneráveis — disse Paulo Abrão, secretário Nacional de Justiça.
O tráfico de pessoas é subnotificado. Para o governo, é um crime autônomo, e a abordagem da vítima é suficiente para caracterizá-lo. Não precisa que seja consumada a exploração sexual ou o trabalho escravo, por exemplo. O consentimento da vítima é considerado irrelevante, já que foi obtido através da fraude, do engano e da falsa promessa. “Não importa se ela sabia ou não que iria se prostituir, se casou com um estrangeiro por livre e espontânea vontade, se concordou em ser transportado para trabalhar e, quando chegou, passou a ser vítima da exploração. O consentimento foi obtido a partir de uma situação de vulnerabilidade”, diz o Relatório sobre Tráfico de Pessoas no Brasil, uma parceria do Ministério da Justiça com o Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crimes (Unodc).
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse acreditar que as medidas a serem anunciadas pelo governo vão estimular os brasileiros a denunciar o tráfico de pessoas. Segundo ele, ainda prevalece o medo e o receio das testemunhas.
— Para um crime ser investigado, é preciso que se tenha notícia de sua existência. Alguns não denunciam por medo, outros, por vergonha. Por isso fazemos um apelo. Aqueles que sabem de situações dessa natureza, que sabem que pessoas podem estar no exterior, sendo levadas para lá enganadas, devem utilizar o telefone 180, devem noticiar a existência, a suspeita dessas práticas criminosas. É para que possamos enfrentar essas organizações, que, infelizmente, fazem do tráfico um dos grandes crimes a serem combatidos — disse Cardozo.
— Nós não podemos ser ingênuos, quando as pessoas aparecem oferecendo emprego fácil, muito dinheiro, situações que claramente envolvem algum tipo de sedução, não condizente com a realidade. Tem que estar alerta e denunciar, para que a polícia possa investigar — completou o ministro.
O número de ligações para os números do disque-denúncia do governo ainda é tímido. Em 2011, foram registradas 35 ligações para cada um desses serviços, o Disque 180, da Secretaria de Políticas Para Mulheres, e o Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos.
— Esses dados revelam que, geralmente, a polícia é o órgão mais procurado nos casos que a vítima tenha sofrido ameaça contra seus familiares ou agressão. E os casos de tráfico que envolvem exploração sexual podem estar sendo registrados como outros crimes sexuais, como estupro, o que é um erro de interpretação — disse Alline Birol, consultora do levantamento.
— Ainda temos um cenário de muitos dados ocultos — afirmou Fernanda dos Anjos, diretora do Departamento de Justiça, do Ministério da Justiça.
Vítima tem baixa escolaridade
O relatório Tráfico de Pessoas traçou o perfil da vítima: é oriunda de classes populares; tem baixa escolaridade; habita espaços urbanos periféricos, com carência de saneamento e transporte; mora com algum familiar; tem filhos; e exerce atividades laborais de baixa exigência, como cabeleireira, manicure, auxiliar de enfermagem, professora de ensino fundamental, vendedora, secretária e doméstica.
Outra linha de ação do governo é ampliar o serviço de auxílio ao brasileiro vítima do tráfico no exterior. Além de instalar casas-abrigo, o plano prevê presença de agentes da Polícia Federal nos países que mais recebem vítimas brasileiras de tráfico, atuando como ponto de contato na cooperação bilateral e auxiliando na repressão.
O Itamaraty informou que há três tipos diferentes de comportamento dessas vítimas brasileiras, quando procuram serviço consular: a que busca informações mas que não é identificada como vítima e não registrada assim; a vítima de tráfico que é identificada como vítima, mas não pede auxílio, somente informação ou documentos; e a que precisa de repatriação ou abrigo temporário e, por isso, tem seu caso registrado e encaminhado.
“No mundo inteiro, diversas pessoas têm caído na rede do tráfico. Melhores condições de vida, um melhor emprego, um marido estrangeiro, o sonho de morar em países desenvolvidos e ter acesso a bens de consumo têm sido as principais razões para que pessoas se arrisquem e saiam de seus territórios para outras cidades e países em busca de oportunidades”, afirma o relatório de enfrentamento ao tráfico de pessoas.
Coordenadora da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude, Dalila Figueiredo diz que, aos poucos, o tráfico de pessoas começa a ser conhecido, inclusive sendo o tema central de uma novela, “Salve Jorge”, da TV Globo.
— Hoje tem mais pessoas pensando nesse enfrentamento e deixando de considerar que traficar ser humano é lenda — disse Dalila Figueiredo.
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