1º júri indígena da história do país absolve réu Outro réu do processo foi condenado por lesão corporal leve; cabe recurso. Réus disseram que atacaram vítima para se defender contra 'entidade má'.
Júri ocorreu no Malocão da Demarcação, no interior da Raposa Serra do Sol, Nordeste de Roraima (Foto: Emily Costa/ G1 RR)
Debaixo das 18 mil palhas de buriti do Malocão da Homologação, no interior da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, o primeiro júri popular indígena do Brasil absolveu um réu acusado de tentativa de homicídio e condenou o outro réu do processo por lesão corporal leve. Os dois, que são irmãos e indígenas, foram acusados de atacar um terceiro índio. O julgamento, que durou mais de 13 horas, ocorreu nesta quinta-feira (23) e teve a presença de cerca de 200 pessoas, conforme estimativa da Polícia Militar. O Ministério Público de Roraima (MPRR) informou que vai recorrer da decisão.
Os réus do processo, Elsio e Valdemir da Silva Lopes foram acusados de tentar matar Antônio Alvino Pereira. Os três, que são da etnia Macuxi, se envolveram em uma briga no município de Uiramutã, na Raposa Serra do Sol, na tarde do dia 23 de janeiro de 2013. Durante a confusão, Elsio e Valdemir cortaram o pescoço e o braço de Antônio, respectivamente. Após a briga, os irmãos alegaram legítima defesa contra Antônio e afirmaram que a vítima estava dominada pela entidade indígena Canaimé. À época, eles foram presos em flagrante e ficaram detidos por 10 dias na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista.
Réus são irmãos da etnia Macuxi; eles não
quiseram conceder entrevistas à imprensa
(Foto: Emily Costa/ G1 RR)
Durante o júri, o chamado Conselho de Sentença, formado apenas por índios da própria reserva, considerou a culpa de Elsio e admitiu que ele teve a intenção de matar Antônio. Contudo, o absolveu pela tentativa de homicídio. Valdemir, em contrapartida, foi condenado, mas teve a culpa por lesão corporal grave atenuada para lesão corporal simples. Com isso, ele foi sentenciado a cumprir pena de três meses de pena no regime aberto, podendo ainda recorrer da decisão em liberdade.
Ao todo, dentre réus e vítima, 10 testemunhas foram ouvidas no caso. Todas elas prestaram depoimento ao júri formado por quatro homens e três mulheres das etnias Macuxi, Ingaricó, Patamona e Taurepang. Dentre eles, o filho da vítima, o proprietário do bar onde ocorreu a tentativa de homicídio e o homem que, segundo os réus, teria dito que a vítima estava sob influência do Canaimé.
Ao G1, o juiz responsável pelo caso, Aluizio Ferreira, se limitou a dizer que a "decisão do júri é soberana e tem que ser acatada". Ele frisou que o júri foi válido, legal e realizado conforme prevê a Constituição Federal e o Código Penal.
Indígenas acompanharam a realização do júri
popular indígena na Raposa Serra do Sol,
no Nordeste de Roraima (Foto: Emily Costa/ G1 RR)
"Foi uma forma muito peculiar de tentar resolver um conflito, foi diferenciado e é algo que deve, no meu entender ser reproduzido. Obviamente, isso depende do Poder Judiciário e dos meus pares, mas eu considero que esse júri provoca reflexão", alegou.
Os réus e a vítima não quiseram conceder entrevistas à imprensa.
Defesa comemorou a sentença
O defensor público estadual José João e a advogada Thais Lutterbak, que defenderam Valdemir e Elsio, respectivamente, consideraram o resultado do júri como 'positivo', apesar da condenação de um dos réus.
"Na verdade, a tese da defesa foi vitoriosa, porque nós afirmamos que o Valdemir não cometeu o crime de lesão corporal grave, conforme a acusação alegava. O júri entendeu que houve uma lesão corporal leve, a qual depende de representação por parte da vítima, o que já prescreveu", afirmou José João.
Segundo o defensor, para que haja punição no caso, a vítima teria que ter feito uma representação contra o agressor. Entretanto, o prazo para fazê-la é de seis meses depois de saber quem é o autor do fato, o que já teria transcorrido, conforme José João.
Questionada sobre a tese de legítima defesa contra a ação do Canaimé, Thaís, advogada do réu absolvido, reiterou que a ação dele foi confessada, mas justificada sob a ameaça da entidade indígena.
Defesa comemorou veredicto; defensor considera
que na prática os dois réus foram absolvidos
(Foto: Emily Costa/ G1 RR)
"A defesa nunca negou a autoria e a materialidade do fato. Então, o júri entendeu que houve um contexto que justificava o cometimento do delito. É claro que não estamos dizendo que a vítima é um canaimé, mas sim que houve um contexto que fundamentou a atuação dos réus", alegou.
Durante o júri, Valdemir alegou em depoimento que o crime aconteceu pois ele e seu o irmão estavam se defendendo contra do Canaimé. Por sua vez, Elsio confessou aos jurados que golpeou o pescoço da vítima com uma faca de "cortar laranja".
MP alega ilegalidade do júri
Desde o início do julgamento, os promotores do MPRR, Diego Oquendo e Carlos Paixão, alegaram que o júri é passível de ser anulado, pois a seleção do corpo de jurados formado unicamente por índios exclui pessoas pertencentes a outras etnias da sociedade, o que vai contra o artigo 436 do Código de Processo Penal.
"Se um morador de uma favela do Rio de Janeiro comete um crime, ele vai ser julgado apenas por membros dessa comunidade? Não. Então, porque isso deveria ocorrer em uma comunidade indígena?", questionou Paixão durante coletiva de imprensa.
Sobre a decisão final do júri, Paixão e Oquendo afirmaram que a setença é contrária às provas do processo, onde ficou claro que houve a lesão corporal grave por parte do réu absolvido. Eles atribuíram a absolvição dele a não compreensão dos jurados sobre os questionamentos feitos no julgamento.
Durante o tribunal do júri popular, é procedimento que após os debates, o juiz apresente uma séria de perguntas simples aos jurados, chamadas de quesitação, onde ele questiona sobre o crime. A essas perguntas, os jurados devem responder 'sim' ou 'não'.
Às perguntas iniciais sobre Elsio, o júri respondeu que houve a tentativa de homcídio e atribuiu a culpa a ele, mas, apesar disso, decidiu absolvê-lo. Por isso, o promotor Carlos Paixão, considerou a decisão 'juridicamente legal, mas desconexa'.
"Olha só a incongruência: o fulano sofreu a lesão? Sim. O beltrano produziu a lesão? Sim. Ele quis matar? Sim. Daí vem o quesito 'você o absolve? Sim'", argumentou, acrescentando que o Ministério Público recorrerá de sentença dentro do prazo de cinco dias.
No sentido horário: líder indígena Zedoeli Alexandre
e o juiz de direito responsável pelo caso,
Aluizio Ferreira; eles concederam entrevista
coletiva antes do início do júri
(Foto: Emily Costa/ G1 RR)
'É brutal', diz líder indígena sobre julgamento
Ao G1, o coordenador regional da região das serras, Zedoeli Alexandre, avaliou o julgamento dos 'brancos' como brutal. Apesar disso, de acordo com ele, a ação muda a forma como os indígenas lidarão com os conflitos a partir da realização do júri.
"Chegamos ao nosso objetivo de nos ajudar a resolver os nossos problemas. Entretanto, ficou marcada a forma como os brancos realizam um julgamento. É brutal e muito diferente da nossa forma, mais respeitosa e educativa de julgar", esclareceu Zedoeli.
Sobre o envolvimento do Canaimé no caso, Zedoeli garantiu que a referência à entidade no processo não deixou os jurados nervosos. "Não temos como afirmar o envolvimento do Canaimé, afinal ele faz parte da cultura indígena tradicional. Não temos como dizer que foi ele, ou não. Então, acredito que tudo foi esclarecido e estamos tranquilos com o término do julgamento", afirmou.
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