Advogados são acusados de dar golpe em aposentados rurais Trabalhadores rurais são obrigados a entregar parcelas atrasadas de benefício por meio de contratos abusivos.
A reportagem especial do Fantástico conta a triste história de trabalhadores rurais, gente muito humilde, que esperou meses, até anos, para receber a aposentadoria a que tinha direito.
Só que nessa espera eles foram enganados por advogados espertalhões. Vários desses advogados já foram condenados, outros, acusados por tirar proveito da falta de informação dessas pessoas para ficar com o dinheiro delas, sem nenhuma vergonha.
É difícil de acreditar: lavradores, que trabalham duro debaixo do sol para botar comida na mesa dos outros, muitas vezes, não tem comida na própria casa.
“A gente passa muita falta, Nossa Senhora. Deus me perdoe, eu falei. É um pecado a gente falar, mas a gente passa até fome”, conta Dona Iracema.
Geraldo Balbino: Ficou difícil. Faltava as coisas dentro de casa.
Rita Balbino: Chegava alguém e falava "Rita, você não vai fazer comida? Falava, eu não tenho nada para fazer
As histórias são parecidas. Essas pessoas foram atraídas por advogados que prometeram conseguir para elas as aposentadorias pelo INSS a que tinham direito. Eles até conseguiram se aposentar. Mas acabaram mal.
Para você entender: o pequeno trabalhador rural pode pedir aposentadoria por invalidez ou idade, 60 anos para os homens, 55 para as mulheres. Às vezes, o pedido vai parar na Justiça, e aí a decisão pode levar um ano, dois, até mais, dependendo da burocracia. Quando o juiz determina o pagamento da pensão, o trabalhador tem direito a receber também pelo tempo que ficou esperando desde que fez o pedido.
Por exemplo, se a decisão demorou dois anos para sair, o aposentado tem direito a receber os 24 meses. São os chamados atrasados ou retroativos. Mas quem está botando no bolso os atrasados são os advogados, pela cobrança de honorários considerados extorsivos. Eles são alvos de um processo do Ministério Público Federal.
No interior da Bahia, 28 advogados foram denunciados na Justiça Federal por essa cobrança abusiva.
Idosos, incapazes, pessoas de baixa ou nenhuma escolaridade que moram em comunidades pobres da zona rural como no sudoeste baiano. Eram os clientes preferidos dos advogados. Pelo trabalho advocatício, em causas previdenciárias, eles cobraram valores muito acima do que a Justiça considera razoável.
Aos 64 anos, Dona Ercília, apesar de aposentada, ainda vai para a roça ajudar o marido. “Eu planto para me ajudar pelo menos no feijão, a raizinha da mandioca, o milho verde para fazer um mingau”, conta Ercília Rodrigues, aposentada.
Remédios para pressão alta, osteoporose, dores na coluna. Dona Ercília achava que ficaria livre das dívidas que tem na farmácia.
Ercília Rodrigues: Estou devendo muito. Como eu já chorei por causa de dívida.
Fantástico: Esse dinheiro que ele levou a mais daria para pagar pelo menos as dívidas?
Ercília Rodrigues: Com certeza.
Foram R$ 12 mil de retroativo. Ela só recebeu a metade.
Ercília Rodrigues: Eu fui iludida. Não foi falado que a metade para eu dar para ele não.
O Fantástico encontrou o advogado de Dona Ercília: Romilson Nogueira, um dos 28 advogados denunciados.
Fantástico: Quanto é que o senhor cobra de honorários?
Romilson Nogueira: O que o estatuto da ordem fala: 20%.
Fantástico: Sempre foi assim? O senhor nunca cobrou mais do que isso?
Romilson Nogueira: Sempre foi assim.
Fantástico: Nós temos o depoimento de uma pessoa que garante que lhe pagou metade do que recebeu das parcelas atrasadas.
Romilson Nogueira: Nós trabalhamos com 20% que é o estatuto da OAB determina.
De acordo com a denúncia do Ministério Público Federal, Romilson Nogueira cobrou mesmo 50% de Dona Ercília.
“O próprio Código de Ética da OAB determina que esses honorários sejam fixados de forma moderada. Portanto, nenhum motivo justifica a fixação de honorários em patamares de 50%”, diz o procurador da República Victor Cunha.
“E deve ser fixado um percentual razoável tendo em vista a situação de carência desse cidadão”, afirma o corregedor nacional da OAB Claudio Stabile.
Mas existem casos que vão muito além dos 50%. O Fantástico descobriu no interior da Bahia que aposentados foram obrigados a entregar, além de parcelas atrasadas, parte do benefício. Ou seja: dividir com o advogado a aposentadoria de um salário mínimo.
Os recibos, mostrados no vídeo acima, são de cobrança emitidos pelo próprio advogado do Pedro. Ele foi aposentado por invalidez porque tem Doença de Chagas.
“Falta de ar. Batimento, até o coração faz assim. Se eu fizer qualquer movimento eu me sinto mal”, conta Pedro Baleeiro, aposentado.
Ele diz que só não passou fome porque os parentes ajudaram. Com a metade da aposentadoria, mal conseguia comprar os remédios.
Fantástico: Você recebia o dinheiro no banco e levava no escritório dele?
Aposentado: Dividia na mesa, assim. Contava: o seu é esse, tome.
Fantástico: E os atrasados também você recebeu...
Aposentado: Dividido também.
Fantástico: Deu o quê, R$ 16 mil?
Aposentado: Foi. Dividido por dois
Fantástico: Ele ficou com R$ 8 mil.
O Fantástico encontrou o advogado na cidade de Urandi, divisa da Bahia com Minas. É Fábio Oliveira de Souza.
Fantástico: Essa assinatura aqui é sua?
Fábio Oliveira de Souza: Sim.
Diante das provas ele não conseguiu negar a cobrança e tentou explicar.
“A gente é livre para trabalhar e elas são livres para contratar. Ninguém está forçando, diz o advogado Fábio Oliveira de Souza.
Fantástico: E para a sua consciência isso está resolvido, está justo? Você dorme tranquilamente, sem problema?
Fábio Oliveira de Souza: Deixa eu falar uma coisa para você. Isso é uma questão de foro íntimo, não posso dizer para você.
O Fantástico entregou ao procurador da República, em Guanambi, cópias dos recibos emitidos pelo advogado. “Entendo que essa prática, além de ser maléfica, é abusiva”, diz o procurador da República.
Descendo até Minas Gerais, chegamos a São João Del Rei. No local, mora Seu Domingos, que perdeu as pontas dos dedos moendo cana. Ele tinha direito a R$ 9,3 mil de atrasados. Mas nunca viu a cor desse dinheiro. E procurou o advogado para saber por quê.
“Ele pegou e falou que o direito era dele, dos atrasados, dez salários e 35%. Ele ainda falou que se fosse cobrar atualmente o valor certo, que eu ainda ficava devendo para ele”, conta o aposentado Domingos Sales de Sá.
O advogado sacou todo o dinheiro e ficou com tudo. Aliás, quase tudo.
“Depois ele ainda falou 'sobrou R$ 20 para você”, conta o aposentado.
R$ 20, dos R$ 9,3 a que tinha direito. Segundo o advogado, tudo acertado em contrato assinado pelo lavrador semianalfabeto. A gente tem pouca leitura, o sujeito manda a gente assinar, eu assinei”, conta Domingos Sales.
Os advogados que cuidaram do processo do Seu Domingos são dois sócios: Leonardo de Almeida Magalhães e Matheus Bevilacqua Campelo Pereira.
Eles também advogaram para Dona Iracema, de 72 anos, que tinha direito a receber R$ 20,8 mil de atrasados. “Mas até hoje não veio não. Nenhum tostão”, diz a aposentado Iracema de Aguair.
Um dinheiro que daria para consertar a casa e comprar os remédios da aposentada. “Está por qualquer hora essa casa cair em cima, a gente lutou muito”, conta Iracema de Aguiar.
Iracema, Domingos e outros moradores da região foram apresentados aos advogados pelo presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e também vereador Geraldo Kenedy, o Tindico, do PSD. Ele recebeu o Fantástico em casa.
Tindico é acusado de usar um carro de som para atrair clientes e usar o prédio da Câmara de Vereadores para fazer reuniões entre os lavradores e os advogados. “Eu tento de todo jeito auxiliar as pessoas na aposentadoria. Inclusive eu forneço transporte de graça para as pessoas”, diz o vereador e presidente do Sindicato dos Trabalhadores,
Geraldo Kenedy "Tindico".
Ele admite que os advogados cobravam todo o valor dos atrasados dos aposentados.
“Era cobrado o valor total do retroativo. Alguns casos. Estranho a gente acha, mas se foi combinado, a pessoa aceitou no início, depois eu não tenho. Como que eu vou fazer?”, diz Geraldo Kenedy
O vereador foi acusado pelo Ministério Público Federal pelo crime de extorsão. O Fantástico procurou os advogados que cuidaram dos casos de Dona Iracema e Seu Domingos. Mas só Leonardo de Almeida Magalhães, aceitou falar por telefone.
Leonardo de Almeida Magalhães: No caso dos meus clientes, de maneira nenhuma eu recebo mais que eles
Fantástico: Então foram os lavradores que propuseram para o senhor que o senhor ficasse com todos o valor dos atrasados?
Leonardo de Almeida Magalhães: Uns que eu recebi, que eu fiquei com os atrasados, a proposta foi exatamente do cliente. A questão de alegar que são analfabetos ou semi-analfabetos isso aí, infelizmente eu considero uma desculpa. Porque eu não tenho que dar satisfação para o Ministério Público Federal ou Estadual. A tabela da OAB, ela especifica o mínimo que deve ser cobrado, não estipula o máximo.
“Existe regra que impede que o advogado receba um valor maior do que o cliente ao final do processo”, afirma o corregedor nacional da OAB Claudio Stabile.
Os advogados ficaram com 100% dos atrasados das duas vítimas. Não muito longe dali, na cidade de Manhuaçu, também em Minas Gerais, o Fantástico encontrou mais casos de cobrança abusiva em processos de aposentadoria.
Geraldo e Rita moram em uma casa simples. Ele é lavrador, ela, dona de casa.
“Eu sofri um acidente. Caí da escada apanhando café e tive fratura no joelho”, diz o aposentado Geraldo Balbino.
Sem poder trabalhar, Geraldo também procurou um advogado depois de ter a aposentadoria negada pelo INSS. Enquanto esperava a decisão do juiz, ficou sem a única fonte de renda que tinha.
Geraldo Balbino: Ficou difícil. Faltava as coisas dentro de casa. Problema de remédio. Faltava para mim. Eu não tinha nem como comprar remédio para mim.
“Nós acordamos, o café da manhã é taioba, o almoço é taioba, é mingau de taioba. No café da tarde vem a taioba de novo e à noite também. Os meus dois meninos mais velhos não sabiam o que era biscoito, porque comia pão velho, Fome. Fome”, relembra a dona de casa Rita Balbino.
Quando finalmente teve a aposentadoria concedida, ele nem fazia ideia de que tinha atrasados para receber.
“Um oficial de Justiça me procurou dizendo que era para eu procurar a Caixa Econômica Federal para receber essa quantia R$ 17,3 mil”, conta Geraldo Balbino.
Mas quando chegou ao banco...
“Segundo o gerente da Caixa, o dinheiro não chegou nem ir na Caixa. Direto do INSS já saiu para a conta do advogado. Eu liguei para ele, ele não atendeu. Eu fui no escritório dele, ele não apareceu para mim. Foi daí que eu já saí de lá com a certeza de que teria sido enganado. Infelizmente fui enganado por eles”, afirma Geraldo Balbino.
O advogado Altair Vinicius Pimentel Campos responde ao processo do Ministério Público Federal no caso do Seu Geraldo. Antes de dar entrevista para o Fantástico, ele se benzeu.
“Essa ação civil pública do Ministério Público é um absurdo. O Ministério Público só tem um foco nessa questão: é a autopromoção de um promotor incompetente, que propôs uma ação pública absurda. Nós cobramos um honorário de 30% sobre os atrasados que por ventura vierem a resultar da ação”, diz o advogado.
30%, afirma o advogado. Mas não foi essa a quantia que ele cobrou de Seu Geraldo, nem de Dona Catarina, quando ela entrou com pedido de aposentadoria depois de quase perder o pé.
“Eu perguntava ele sobre dinheiro e ele falava comigo que ainda não tinha chegado. Faz muita falta, porque eu dependo desse dinheiro porque dos remédios que eu tomo. Fiquei quatro anos procurando ele querendo saber dessa resposta”, disse aposentada Catarina Marques da Silva.
“Há o dever do advogado de prestar contas ao seu cliente. Ainda que simples, mostrar para o seu cliente 'olha recebi tanto, fiquei com tanto, estou te pagando tanto”, destaca o procurador da República Lucas Gualtieri.
Não foi isso que aconteceu. Dona Catarina só descobriu que tinha direito a R$ 28 mil de atrasados quando um oficial da Justiça chegou em sua casa com o aviso judicial. Mas o dinheiro também já tinha sido retirado do banco pelo advogado Altair.
“Só que ele não queria me dar os R$ 28 mil, não. Queria me dar 14 mil. Eu chorando demais com ele, ele me deu R$ 1 mil a mais”, conta Catarina.
Este é mais um entre centenas de casos que se espalham pelo Brasil inteiro e que estão sendo investigados pelo Ministério Público. “Os advogados também tinham ciência de que eram pessoas carentes que precisavam daquele recurso. E mesmo assim os advogados, em alguns casos, se apropriaram desses recursos”, diz a procuradora da República Ludmila Oliveira.
A Ordem dos Advogados do Brasil contesta a ação do Ministério Público Federal.
“Não cabe ao Ministério Público Federal punir ou julgar infração ética de advogado. Nos termos da lei, cabe ao tribunal de ética e disciplina da OAB julgar a infração ética”, diz o corregedor nacional da OAB Claudio Stabile.
“O Ministério Público está pedindo que seja limitada a cobrança de honorários nessas causas previdenciárias de baixa complexidade, até 20%. E os valores que foram cobrados além desse limite que sejam ressarcidos para os clientes”, defende a procuradora da República Ludmila Oliveira.
A fixação do limite dos honorários será decidida na Justiça Federal. Além da ação civil pública, os advogados podem responder a processos criminais.
“São investigados os crimes de apropriação indébita, que é o crime exatamente de uma pessoa que se apropria de um valor que não é seu. Há também o crime de sonegação fiscal. Há ainda o crime de patrocínio infiel, que é a situação na qual o advogado trai confiança do seu cliente”, diz o procurador Lucas Gualtieri.
Impossível saber quantos trabalhadores já foram enganados. As investigações dos procuradores constataram que, na maioria dos casos identificados, não houve contrato formal entre cliente e advogado.
Na cidade de Guanambi, no sudoeste do estado, a Justiça já está começando a ser feita.
Os advogados denunciados pelo Ministério Público foram condenados pela Justiça Federal de Guanambi a devolver em dobro todo o dinheiro que receberam a mais. E ainda ao pagamento de uma multa que equivale à metade dos valores que ultrapassaram o teto máximo de 20% de honorários.
Os advogados da Bahia recorreram da condenação da Justiça Federal de Guanambi. Agora a decisão cabe ao Tribunal Regional Federal, em Brasília.
“É bom deixar claro também que quem pratica ilícito são a minoria. A minoria da advocacia. Hoje no país nós temos quase 1 milhão de advogados, e a grande maioria é formada por advogados honestos”, destaca Alex Barbosa de Matos, presidente da OAB-Manhuaçu (MG)
Enquanto isso não se resolve, gente como Seu Geraldo e Dona Rita, Dona Iracema e Dona Catarina vão continuar sem ver os atrasados das aposentadorias. É tudo o que Dona Ercília deseja: ter de volta o dinheiro que o advogado cobrou a mais.
"Se chegar R$ 2,3,4 ou 5 mil, eu fico feliz demais, muito feliz. Fico alegre, alegre. Eu até saro. Porque eu estou deprimida de sofrimento”, diz a aposentada Ercília.
“Dá muita tristeza. Dá tristeza da gente pensar como é que pode uma pessoa ser ganancioso, que isso é ganância, porque ele tem. Ele tem profissão. E outra: tirar de quem não tem nada para oferecer”, diz Rita.
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