A pobreza de nossas crianças Mais da metade das crianças e adolescentes até 17 anos sofre alguma espécie de privação não monetária
Nos últimos cinquenta anos, qual é o candidato ou candidata, de vereador a presidente, de qualquer partido, religião, ideologia ou preferência clubística, que nunca tirou uma foto com uma criancinha no colo e discursou, pelo menos uma vez, com voz embargada e olhos marejados, dizendo que ali estava o futuro de nosso país e que tudo iria fazer pelo seu bem-estar?
Síndicos de prédios, técnicos de futebol amador, diretores de escolas, dirigentes sindicais, líderes estudantis e empresariais, artistas, jornalistas, magistrados e atletas, todos enfim, sempre concordaram à unanimidade que a infância merece uma proteção prioritária por parte do Estado e da sociedade.
Pois bem. O Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef publicou um estudo merecedor de atenção máxima das autoridades e da sociedade brasileira. Denominado “As múltiplas dimensões da pobreza na infância e na adolescência no Brasil”, o documento traça um retrato desolador e desafiador da situação das crianças e jovens brasileiros.
O trabalho é inovador porque não se restringe à dimensão da pobreza monetária, aferida a partir da renda familiar, mas apresenta outros indicadores que expressam privações, exclusões e vulnerabilidades de direitos fundamentais.
Assim, além da renda, foram considerados dados relativos a alimentação, educação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e informação.
Antes da pandemia da Covid-19, os dados do IBGE indicavam a gigantesca cifra de 32 milhões de crianças vivendo na pobreza.
A pandemia agravou a situação de múltiplas formas.
Um dado alarmante é que na maioria dos estados brasileiros, mais da metade das crianças e adolescentes até 17 anos sofre alguma espécie de privação não monetária.
Mesmo em São Paulo, o estado mais bem posicionado, mais de um quarto desses brasileirinhos não tem os seus direitos básicos respeitados.
O fator que individualmente mais contribui para essa vergonhosa situação, mais até do que a renda, é a ausência de saneamento, ou seja, crianças que vivem em casas sem banheiro, com vala a céu aberto ou com fossa rudimentar.
Antes da pandemia da Covid-19, os dados do IBGE indicavam a gigantesca cifra de 32 milhões de crianças vivendo na pobreza. A pandemia agravou a situação de múltiplas formas
Como vivemos num país profunda e dissimuladamente racista, não é surpreendente que crianças e jovens negros e indígenas apresentem indicadores de pobreza em média 25% superiores aos de seus compatriotas brancos.
Outro dado impressionante é que diversos indicadores pioraram nos últimos anos, notadamente alimentação e educação. Em 2020, a parcela de brancos com padrão não apropriado de alimentação era de 11,1% e no ano seguinte aumentou para 17,8%.
Em relação a negros e indígenas, a piora foi de 19,7% para 31,2%. Piorou muito para todos e a desigualdade aumentou ainda mais.
Em diversos estados, o trabalho infantil de crianças entre 10 e 13 anos alcançou mais de 10% da população nessa faixa etária. Mas nesse caso, a disparidade é de gênero: o trabalho infantil é três vezes mais frequente entre as meninas do que entre os meninos.
Que espécie de futuro estamos semeando para as novas gerações?
Voltando ao início, se há sinceridade no discurso de nossos líderes, como ainda não conseguimos assegurar o mínimo de direitos essenciais a todas as crianças?
O estudo propõe diversas medidas imediatas e urgentes como: fortalecer o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente; implantar políticas de busca ativa escolar e retomada da aprendizagem; buscar identificar precocemente as famílias vulneráveis a violências; promover a segurança alimentar e nutricional de gestantes, crianças e adolescentes; priorizar investimentos em água e saneamento etc.
Tenho esperança de que todos nós possamos de algum modo contribuir para melhorar esses indicadores o mais rápido possível.
Afinal, a privação de direitos e a pobreza material de nossas crianças são o espelho da miséria moral das gerações mais velhas.
Observação: o estudo completo pode ser acessado em www.unicef.org/brazil.
LUIZ HENRIQUE LIMA é professor e escritor em Cuiabá.
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