Na contramão de outros mercados, governo taxa carros apenas pela cilindrada
Incentivo a motor obsoleto prejudica desenvolvimento tecnológico do Brasil
Imagine um campeonato de boxe repleto de adversários, com lutas disputadíssimas e divido em três categorias: atletas de até 1,70 m, entre 1,71 m e 1,90 m e 1,91 m ou mais. Fatores como peso e desempenhos anteriores não seriam considerados. Estranho, não é mesmo? Mas é mais ou menos assim que acontece no mercado de automóveis no Brasil.
Uma das principais taxas incidentes sobre automóveis, o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) é cobrado, basicamente, em cima de três alíquotas baseadas na cilindrada: para carros até 1.0, entre 1.1 e 2.0 e acima de 2.0. Modelos flexíveis, utilitários esportivos e importados possuem valores diferenciados, mas ainda respeitando essas três faixas.
Na teoria, um Volkswagen Jetta 2.0 aspirado, com fracos 120 cv de potência, pagaria os mesmos impostos de um Audi TTS, cujo motor 2.0 mais eficiente gera 272 cv . Na prática, é ainda pior: por ser mexicano, o Jetta recolhe 11% de IPI, contra 43% do TTS (sem considerar o desconto aplicado pelo governo até agosto). Segundo Milad Kalume Neto, gerente de atendimento da consultoria especializada Jato Dynamics do Brasil, esse tipo de taxação é retrógrada.
— Essa política está errada, é antiquada e contrária ao que é visto no restante do planeta, em especial ao que chamamos de primeiro mundo. Em um país tido como possuidor de uma matriz energética limpa, esse tipo de tributação é ultrapassado.
Da maneira como está, a cobrança incide apenas sobre o tamanho do motor, e não sobre sua eficiência energética. A lógica funcionava bem até a década de 1980, quando, de fato, blocos de maior cilindrada eram mais potentes e poluentes, como explica Klaus Mello, gerente de engenharia e desenvolvimento da Ford do Brasil.
— A ideia de estimular a venda de motores de baixa cilindrada era que eles teoricamente eram mais econômicos. Contudo, a maior parte das fabricantes encurta o câmbio dos carros 1.0 para aproveitar mais o motor, o que eleva as rotações e aumenta o consumo de combustível. Por isso, em muitas situações, um carro 1.6 pode ser mais econômico do que um 1.0.
Os americanos até defendiam a adoção de grandes motores V8, criando um famoso ditado: “Nada substitui a cilindrada”. A frase gera um trocadilho na versão original em inglês: “There’s no replacement for displacement”.
Preço da inovação
Nas últimas décadas, porém, a fumaça da indústria automotiva começou a entrar nas sedes de governos na Europa e nos Estados Unidos, obrigando os políticos a adotar medidas mais rigorosas contra os carros, considerados por muitos como os grandes vilões do meio-ambiente. Iniciou-se a taxação pelo consumo de combustível, no caso dos americanos, e pela emissão de poluentes no lado Europeu.
As novas políticas compulsoriamente aceleraram o desenvolvimento de motores mais modernos e econômicos. Injeção direta de combustível, adoção de sobrealimentação (com turbo ou compressor), corte automático de cilindros e sistema que desliga o motor quando o carro para são apenas alguns dos exemplos nesse sentido. Foram tantos os dispositivos que surgiram que a busca por eficiência ganhou até um nome, "downsizing". O termo, sem tradução direta para o português, define a troca de motores antiquados de alta cilindrada por outros menores tão — ou mais — potentes, porém econômicos e menos poluentes.
As inovações, claro, foram caras, e começaram a aparecer primeiro nos modelos de luxo, cujo preço permite acréscimos no valor final sem impacto significativo nas vendas. Com o aumento gradual na produção desses novos motores, os custos começaram a cair, permitindo a adoção das tecnologias em modelos de segmentos inferiores. Porém, o fato de a popularização já ter ocorrido em outros países só evidencia que o Brasil precisa passar pelo mesmo amadurecimento, como afirma Mello.
— Do jeito que a taxação está, é inviável oferecermos a família EcoBoost 1.0 [de 100 cv a 120 cv, com sobrealimentação por turbo] no Brasil nos segmentos de entrada.
O executivo também diz que cobrar impostos pela eficiência do motor incentivaria a chegada de novas tecnologias, inclusive nacionais. Atualmente, nenhum motor a gasolina ou flexível com injeção direta de combustível ou sobrealimentação é produzido no Brasil, e quem quiser ter um desses modernos propulsores na garagem precisará desembolsar no mínimo R$ 60 mil.
Motor 2.0 do VW Jetta gera 120 cv, potência igual à alcançada por modernos 1.0 com turbo (Divulgação)
Realidade
O ideal, claro, seria ter carros que poluíssem muito pouco ou nada, como os híbridos e elétricos. Mas questões como fontes de energia elétrica e capacidade da bateria ainda limitam o potencial desses modelos, o que torna lógico o desenvolvimento dos motores a combustão, cujo projeto básico é o mesmo há mais de um século. Ex-presidente da Audi do Brasil, Paulo Kakinoff declarou que este cenário não pode ser ignorado pelas empresas.
— O futuro é o carro elétrico e o carro híbrido, mas esse é um cenário pra daqui a 15 ou 20 anos. E muita gente acha que esse meu prazo é otimista. As empresas também têm a obrigação de trabalhar em soluções para hoje. E a solução para hoje é o motor menor, com turbocompressor e injeção direta, que entrega bom desempenho e bom consumo de combustível.
Felizmente, o coro de que tamanho não é documento começa a ganhar força também dentro do governo, como afirma Décio Maliolli, gerente de desempenho de produtos e motores da Petrobras.
— Nós já sentimos o governo mobilizado nesse sentido [de mudar a metodologia de tributação]. Dentro dos grupos de estudo em Brasília existe essa tendência de usar o Mega Joule por quilômetro para a tributação. Mas ainda não há qualquer prazo para que isso ocorra.
E, se depender da opinião de alguns especialistas, a chegada de motores modernos mais acessíveis só irá acontecer após uma mudança fiscal, como declara o consultor Kalume.
— As montadoras nacionais ainda representam grande fatia do mercado e possuem enorme força político-econômica. Mais de 85% dos motores na faixa até 1.4 são comercializados pelas quatro maiores montadoras instaladas no Brasil, e são esses motores que apresentam os maiores índices de obsolescência tecnológica.
No esforço para diminuir a poluição do meio-ambiente causada pelos automóveis, os "lutadores" — governo e montadoras — precisam deixar o ringue e ir à mesa de negociações.
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