Um corpo
Cinco horas e trinta e seis minutos. O sol estava despontando. Saio para a minha caminhada habitual. No percurso já meu conhecido vejo a banca de jornal ainda fechada. No chão da calçada em frente à banca um menino, dos seus 12, 13 anos, dormindo.
Aproximei-me. O corpinho daquele menino estava em contato direto com o sujo piso da calçada. Geralmente o morador de rua estende um papelão para se deitar. Às vezes jornais velhos servem de coberta. Mas, neste caso, a crueza da situação estava presente em todos os detalhes. Chamou-me a atenção a posição da criança dormindo. Estava na posição predileta na vida intra-uterina: corpo em decúbito lateral esquerdo, cabeça fletida sobre o corpo, os bracinhos quase colados ao tórax anterior, mãozinhas em cima do coração, as perninhas em direção ao abdome.
Fiquei paralisado olhando aquela cena. Sei que estava diante de uma chaga social muito comum nas cidades. Mas o confronto da realidade dura dessas crianças andrajosas e famintas de coração caiu sobre mim com o impacto de uma bofetada. O nosso futuro jogado na calçada. Ajoelho-me ao lado do menino. Percebo movimentos respiratórios. Biologicamente ainda está vivo, porém socialmente está morto há muito tempo. O menino dormia tão profundamente que não se mexeu ao meu toque no seu braço. Pensei comigo: "Não é um sono natural. Será que está drogado?" Achei melhor não tirá-lo subitamente do seu aparente torpor. Talvez, pensei, no retorno da minha caminhada eu possa ter a sorte de encontrá-lo um pouquinho mais desperto, e assim poder prestar algum tipo de ajuda para minimizar o seu sofrimento.
Com este pensamento prossegui a minha caminhada. Mas, para mim, a manhã se tornara sombria e triste. A imagem do menino dormindo no chão não saía da minha mente.
Esta nação, tão generosa para alguns, não se interessa pelo seu futuro. Ficaremos eternamente discutindo o óbvio e os pequenos problemas emergenciais de uma determinada situação. Queremos projetos mirabolantes de exploração de recursos naturais no fundo do mar, quando o Brasil de hoje é um profundo fundo de mar de problemas sociais. Para resolver o nosso projeto tecnológico dependemos de ajuda científica dos países que cuidaram das suas crianças. As dificuldades do nosso fundo do mar social dependem exclusivamente de nós. Não me sai do pensamento como um país rico em matéria-prima joga o seu futuro de nação independente nas calçadas das suas ruas.
Por razões que fogem à minha compreensão, resolvo encurtar a minha volta e me dirijo à banca de revista. O menino não está mais lá. Pergunto a um amigo que, diariamente, com a ajuda de dois filhos, monta ao lado da banca de jornal a sua barraquinha para vender café, sucos de frutas naturais e salgadinhos, sobre o menino que dormia na calçada ao lado da sua barraca. Ele me responde que tinha acabado de chegar e não viu nenhum menino dormindo na calçada. Agradeço a informação e volto pesaroso para a minha casa.
Volto pesaroso e uma pontinha de sentimento de culpa martelando a consciência. Nestes tempos tão cruéis e embotados, será que a praga da indiferença dos nossos governantes frente à tão graves problemas sociais estará contaminando a todos nós? Será que também eu fiquei insensível ao drama que presenciei? Mas não! Não fiquei insensível! Apenas aprendi uma grande e triste lição: a miséria social, principalmente das nossas crianças, não admite adiamentos.
Gabriel Novis Neves é médico em Cuiabá e escreve neste espaço às quintas-feiras. E-mail: borbon@terra.com.br
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