O limpar das gavetas
Último mês deste ano. O vindouro já bate à porta. Hora de limpar as gavetas. Tarefa nada fácil. Isso em razão do emocional. Pois no fundo das ditas gavetas existem coisas que não podem ser jogadas fora. Embora, muitas vezes, elas precisariam ser encaminhadas para a lata do lixo. Mas, em outras ocasiões, as ditas coisas fazem tanta falta. Pois trazem quadros do pretérito que carecem ser relembrados. Relembrá-los permite reviver, ou a sensação do viver de novo, e este, pelo seu turno, pode provocar a reflexão. Exercício apropriado para esta fase, que é vista, por alguns, como balanço do realizado.
Realizar. Conjugação necessária. Mesmo que ela seja feita com erros. Aliás, nem sempre o agir, e o fruto dessa ação se dão baseado em acertos, uma vez que o próprio usufruir da vida - igualmente uma ação - ocorre em meio a desacertos e acertos. Misturança que marca e caracteriza o cotidiano da pessoa. Ainda que se pose de "perfeccionista". Afinal, homem algum pode ser visto como perfeito. Pois vícios e virtudes dividem igual espaço, sem o qual o que é tido como humano deixaria de existir. Talvez, por isso, e em tão boa hora, Hannah Arendt chegou a lembrar que esse ser se sustenta no seguinte tripé: o trabalhar, relacionar-se e amar, cujas ausências, ou de apenas uma de suas peças provocaria a perda da sua essência, isto é, o humano.
Condição natural. Mesmo que exista um conflito no interior de cada pessoa. Daí a importância do estado de solidão - concebido, no dizer de Arendt, como forma de isolamento necessário para que se ative o diálogo interno. Pois quando alguém está só, está consigo mesmo, em companhia do seu próprio eu, e, portanto, dois em um.
Gera-se, então, o pensamento. Até porque o pensar não deixa também de ser uma ação isolada. Assim como igualmente o é a tarefa de vasculhar as gavetas, dentro das quais se encontram lembranças, eventos e momentos que, nem sempre, podem ser deslocadas para os escaninhos do passado.
Passado e presente, entrelaçados, constituem o viver. Mesmo que, contraditoriamente, se diz que a sociedade se sustenta no imediatismo, no agora. Certamente em função do individualismo exacerbado. Mesmo que o final do ano obrigue a todos a enxergarem o vizinho, bem como aquele nem tão próximo. Momentos das doações. Sestas básicas e brinquedos transformam tristezas em alegrias e olhares carrancudos, radiantes de felicidades. Ainda que temporário, pois, assim que passa a data natalina, a realidade se desnuda, e deixa à mostra toda a sua cruel dureza para uma porção de gente.
Percebe-se, então, que nada adianta limpar as gavetas. Tampouco esconder o real debaixo do tapete. Isso porque a periferia faz parede meia com o casarão.
Nesse sentido, talvez, a melhor coisa a fazer é pensar no que se fez ou realizou, sem perder os olhos dos para-brisas, pois do outro lado da rua pode estar uma pessoa a precisar de ajuda, e ao ajudá-la, certamente está a ajudar a si mesmo.
Lourembergue Alves é professor universitário e articulista de A Gazeta, escrevendo neste espaço às terças-feiras, sextas-feiras e aos domingos. E-mail: lou.alves@uol.com.br
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