Poderia fazer como a borboleta: esquecer do passado e voar livre, leve
Lembrança-saudade
Meu marido sempre dizia quando eu insistia - moto contínuo não existe, as leis da física são taxativas, não permitem dúvidas aleatórias. Hoje, passados quase três anos, lhe diria, se aqui ele estivesse – existe, sim - a lembrança gera saudade, a saudade gera lembrança. Como não ser assim?
Sessenta anos surfando juntos as mesmas águas da vida, enfrentando ondas gigantescas, entrando em negros túneis e deles saindo de mãos dadas para o calor do sol, para admirar a luz da lua e muitas vezes olhar o céu e contar estrelas e ouvi-las, pois, como dizia o poeta: "só quem ama pode ter ouvidos capazes de ouvir e de entender estrelas." E a certeza de que demos bons frutos se engloba a tudo mais que vivi.
Aqueles olhos castanhos a cruzarem-se com os meus dizendo coisas que só meu coração entendia, aqueles braços a aprisionar meu corpo ternamente, aqueles lábios a tocar os meus tão docemente que ao serrar meus olhos hoje, impulsiono com mais vigor o motocontínuo da lembrança - saudade.
Chego às vezes a me sentir prisioneira desse moto contínuo e procuro então superar, reconhecendo que as lembranças e saudades veem mescladas do desejo de atingir o inatingível, um retorno impossível. O impossível é eterno, o eterno não tem fim. Por intuição percebo que a alma é eterna, que é energia pura exclusiva de cada ser que nasce. Energia gera calor. Assim, volto a retomar minha alegria acreditando naquilo que desejo acreditar: nossas almas se encontrarão um dia e juntinhas então, teremos um gozo cósmico com nossa isotermia. Mas até lá, o motocontínuo continua no meu dia-a-dia-saudade-lembrança.
Lembrança-saudade.
Chego muitas vezes à exaustão e até procuro libertar-me desse motocontínuo. Penso que poderia fazer como a borboleta. Esquecer do passado e sair voando livre, leve. Não, a consciência me diz que fui privilegiada. Não, não posso esquecer que o meu eu foi sendo evolvido por camadas de experiências. E agora se me libertar desse moto contínuo das lembranças e das saudades do que por mim foi vivido, que serei eu? Estou com medo do tempo, ele, que "tudo desbarata" poderá vir devagar desfazer os invólucros do meu Eu. Não sou borboleta para deixar sem resquícios daquilo que foi. Nela, o simbolismo da importância da liberdade. O Criador quis expor para que sua suprema criação - o ser humano - reconhecesse que a liberdade é um direito adquirido por todos os seres ao vir ao mundo. Mas não almejo a liberdade total, assim imploro:
Ei, espera aí, tempo! Dá-me mais tempo no meu espaço para refletir, para me recompor, não vá retirando todas as camadas e invólucros que compuseram o meu eu. As camadas de alegrias que se foram acumulando e camadas de benesses que recebo ofertadas pelos que me amam. Não, senhor tempo, ainda "Vou contagiar diversos corações" com minha alegria porque assim eu quero, porque assim eu gosto e isso sei fazer.
Tanto porque não só posso, como devo levar uma visão positiva da vida a aqueles que me estendem suas mãos com carinho. Essa afeição explícita ajuda-me a seguir a minha caminhada até quando minha alma, transportada pela magia da energia quântica, for levada deste plano ao encontro da alma que está a me esperar.
Meu neto Toco falou a todos que estavam a volta da mesa a ouvir a dissertação: Vó, esse "gozo cósmico" pelo jeito, vai explodir o morro de Santo Antônio e de dentro, a piraputanga gigante que lá, dizem existir, vai voar pelos ares...
O "gozo" explodiu em risadas. Inclusive, minha!
É, mas o que não dá para gozar, nem para rir, só para chorar, foi a "inocente" referência do antigo presidente Lula à viagem do ministro Gilmar Mendes a Berlim.
Ah!, meu amor, aonde você está agora, a ética vigora?
MARIA LYGIA DE BORGES GARCIA é escritora, esposa do ex-governador Garcia Neto, falecido em 2009, que hoje completaria 89 anos .
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