O povo, o polvo e a pólvora
Sigo na aula online aos domingos. Ontem entrei atrasada, cheia de respiração longa da Yoga. Também cheguei atrasada na Yoga. E saí atrasada da Yoga. Liguei a câmera ainda de cara vermelha, suada até o dedinho do pé. Tomei um susto. Tinha uma espécie de briga rolando entre a professora e uma das alunas. Não sei se dá pra classificar como briga. Mas não tava fofo não.
Tomei um susto tão grande que meu telefone caiu no meio da aula. Não quebrou. Fiquei pensando na cara que eu fiz quando a queda começou. Porque, veja, eu olho a cara de todo mundo o tempo todo. Mais de metade da minha atenção está sempre voltada para a cara do povo, e a casa do povo, e o que se passa na casa do povo, e o povo e o polvo, e a pólvora.
Aí eu volto pro que está sendo dito e presto atenção e tô toda lá, até que, a cara do povo, a casa do povo, o polvo, a pólvora. Esses dias, subi a Angélica na urgência de um horário marcado no meio da Paulista pra dali a dez minutos - sendo que precisa de uns 25 pra chegar. Quase na pontinha entre uma avenida e outra, já tinha passado uns 15, cruzei um desses grupos de meninos que querem te vender uma assinatura de teatro, um apartamento ou um terreno em Marte. O moço me para e diz num sorriso com dentes demais: “pronto, você, você tem cara de ser legal”.
Não parei pra pensar, nem tive tempo de frear a frase que me saiu meio automática: “talvez eu não seja tão legal”. Soou tão antipática quanto a briga da aula. Ele nem esperou minha chatice esfriar e devolveu um “eu também não sou, ninguém é legal não, tá todo mundo fingindo”.
Aquilo me impressionou tanto. Primeiro o meu medo de cravar o “não sou legal”. Enfiei um talvez pra começar a frase. Ao mesmo tempo, meu incômodo por ser tomada por legal assim de graça. Legal é ótimo, e pensando agora, legal é péssimo, pensa num livro legal, legalzinho. É um livro quase ruim, né não? Depois pela minha indelicadeza. Porque não mandei um “obrigada, estou com pressa”?
Mas o que mais me pegou foi essa “cara de legal”. Essa cara me cavou duas rugas enormes ao redor da boca, dor no rosto na tentativa de segurar um sorriso o dia inteiro. O resultado visível do esforço põe em cheque a razão do esforço. Interessa menos o “estamos todos fingindo” e muito mais a pergunta: Por que fingir? Pra que? Pra quem? Não sei se dá pra classificar como briga. Mas não foi fofo não.
Roberta D'Albuquerque é psicanalista, atende em seu consultório em São Paulo e escreve semanalmente no Gazeta Digital e em outros 17 jornais e revistas do Brasil, EUA e Canadá. E-mail: contato@robertadalbuquerque.com.br
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